quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

As Searas !


Eram searas de milho, geralmente com feijão branco e aboboreiras incorporados; searas de grão de bico e searas de feijão frade. Searas semeadas nas terras daqueles que as tinham e cultivadas, desde a primeira sachadela até à partilha da respectiva produção, nas eiras, pelas famílias constituídas por trabalhadores rurais, gente sem terra nenhuma.

Aos donos das terras, desde pequenos proprietários a latifundiários, chamávamo-los de lavradores. Latifundiários mesmo, na zona constituída pelas freguesias do Pombalinho e da Azinhaga e pelo Reguengo do Alviela, uma pequena localidade em que a minha mãe nasceu e que pertencia à freguesia de São Vicente do Paul, que fica muito mais longe que o Pombalinho, eram dois, ambos residentes em quintas situadas na freguesia da Azinhaga: o João de Assunção Coimbra, na Quinta da Melhorada, onde nasceu o meu pai e de onde se via passar os comboios, e o Manuel Tavares Veiga, na Quinta da Broa, junto à ponte sobre o rio Almonda, que passa pela Azinhaga e vai desaguar no Tejo logo ali a umas centenas de metros.

Depois de semeadas e com as plantas já a romper, as terras eram divididas em courelas iguais através de regos abertos por uma charrua e distribuídas, por sorteio, pelas mulheres casadas que, antes informadas, acorriam ao local para tirarem um papelinho numerado de um boné ou de um barrete, ficando, assim, cada uma a saber qual era a sua seara. O sorteio visava eliminar suspeitas de favoritismo, já que, numa propriedade grande, sempre havia um ou outro bocado de terra menos fértil.

Eram as mulheres casadas que tomavam conta das searas e que mais nelas trabalhavam, porque, no Pombalinho, a mulher, uma vez casada, deixava de trabalhar assalariada. Com efeito, as raparigas, logo que tivessem idade e corpo – corpo, sobretudo - para trabalharem no campo, assalariadas, era isso que passavam a fazer, assim contribuindo, daí por diante, com a sua jorna para o sempre parco orçamento familiar. Mas só até casarem. A partir daí, ponto final. Deixavam de ter de ir à praça (noutra altura veremos o que é que isto quer dizer), aos Domingos, para arranjarem patrão. Ou seja, a partir do casamento, a mulher, no Pombalinho, cuidava do marido e dos filhos, da casa e do mais que se verá. Diferentemente do que sucedia na vizinha Azinhaga, por exemplo, o que implicava, naturalmente, outras diferenças, assunto a que oportunamente voltarei, pois que a observação de usos e costumes sempre me cativou. É, de resto, do que estou já a falar e do que tratarei na maior parte destas minhas memórias.

O cultivo das searas de milho, normalmente mais do que uma por ano e por família, do mesmo ou de diferentes lavradores, obedecia aos procedimentos seguintes:
Uma vez tomada conta da courela atribuída pelo já referido sorteio, as mulheres para ali se deslocavam, cada uma para a sua seara, sempre que tivessem tempo para isso e até que a sacha terminasse. Durante os chamados dias úteis da semana, se tinham filhos em idade que já desse para aguentarem a sachadeira nas mãos, mas não ainda para trabalharem por conta de outrem (e desde que não fosse dia de irem à escola, para os que andavam na escola), lá iam os filhos também para ajudarem na tarefa de eliminar as ervas e os pés de milho considerados a mais para o bom crescimento da seara e para o tamanho das futuras maçarocas, não se tocando, porém, nos pés de feijão e de aboboreira. Ao Domingo, se calhava de haver sacha para fazer, era a família inteira que ia para a seara, até cerca das onze horas, altura então de se ir almoçar e de se preparar cada um, depois, para passar o resto do dia conforme a idade, o estatuto e as obrigações familiares.
À sacha seguia-se, algumas semanas depois, a amota, que consistia em chegar terra ao pé de cada milheiro, não sei bem para quê, mas imagino que para as plantas melhor se aguentarem direitas quando, já grandes, fossem batidas pela chuva e pelo vento. Aproveitava-se então para de novo deitar o fio da sachadeira à erva já de novo a despontar.

O empenhamento da família era o mesmo... e o mesmo era para as fases seguintes do cultivo, sujeitas algumas destas a variantes, consoante a robustez que as plantas atingissem, coisa dependente das condições atmosféricas e de serem as searas regadas ou não.
Se as plantas se tornavam robustas, caso em que, naturalmente, davam boa maçaroca (uma ou duas), proceder-se-ia ao desfolhamento e desbandeiramento. Julgo que a finalidade dessa operação era fazer com que as maçarocas ficassem mais expostas ao sol e, assim, amadurecessem mais depressa, tendo em conta que era preciso despachar todo o trabalho relativo à colheita antes que as chuvas viessem criar embaraços. Quando o procedimento era este, as folhas e as bandeiras eram dispostas em paveias que, depois de secas, dali seguiam para os palheiros e alimentavam o gado nos tempos de cheias e de secas, em que outra coisa não havia. Neste caso, ainda, as maçarocas eram depois colhidas para cestos de verga que a seguir eram despejados em dois ou três pontos da seara, formando montes de onde, em devido tempo, eram transportadas, em carros de bois ou de mulas, para as eiras. Os canoilos ficavam, podendo vir a ter um destino diverso: ou permanecerem ali, de pé, caso em que o gado, ao ser depois posto a pastar no local, ainda aproveitava alguma coisa e em que o que sobrasse seria enterrado na próxima lavoura, enriquecendo o húmus; ou serem cortados (a ferramenta usada para tudo quanto fosse corte nestas searas era a foice) e também levados em molhos para palheiros, a fim de servirem de cama ao gado e, depois de cumprida essa função, serem levados para a estrumeira, de onde voltariam à terra, para adubá-la. “Nada nasce, nada morre, tudo se transforma”, Lavoisier dixit.Se a seara não encorpava coisa que se visse, era ceifada rente ao chão e também disposta em paveias, só depois se extraindo a maçaroca. Dali, era dado a cada coisa o destino já nosso conhecido: paveias para o palheiro; maçarocas para a eira. E para a eira eram levados igualmente o feijão, arrancado pela raiz, e as abóboras, arrancadas às aboboreiras.

Passemos à eira, e comecemos pela descamisada. A descamisada era feita, na sua totalidade ou quase, à noite, depois da ceia e à luz de gasómetros. Normalmente, cada monte de milho levava mais do que um serão a descamisar, dependendo do seu tamanho e do número dos participantes. Para a descamisada ia a família toda, menos os que ainda nem força tivessem para tirar a camisa à maçaroca. E menos os rapazes que namoravam. Esses iam para o monte de milho das namoradas. As maçarocas descamisadas iam sendo atiradas para cestos que, quando cheios, iam ser despejados na eira, deixando-se o milho espalhado, para melhor acabar de secar. As primeiras camisas iam sendo dispostas de maneira a servirem de assento (sempre ficava mais macio que o chão) e depois eram atiradas para o lado e amontoadas, para posterior enfardamento manual. Serviam, nesse tempo, sobretudo para, depois de desfiadas, encherem colchões e almofadas.

À volta dos montes de milho podia haver um quase silêncio, se os descamisadores eram somente um casal, ou conversava-se, contavam-se anedotas, gracejava-se a propósito de qualquer coisa, quando os participantes eram em maior número. E se calhava de aparecer alguma maçaroca roxa, era uma algazarra, tanto mais que aquele ou aquela que a tivesse encontrado ficava obrigado a dar um beijo a cada um dos presentes, o que criava muitos constrangimentos. Basta que se saiba que, naquele tempo, as pessoas não se cumprimentavam beijando-se. Beijos, só entre os casais (e feito com muito recato) e entre mães e filhos. Entre os namorados, só muito à socapa. Era proibido, mas oportunidades não faltavam, pelo menos quando o namoro tivesse recebido já o aval do pai da rapariga ou de quem o substituísse, altura a partir da qual decorria dentro de casa.

Depois da descamisada e de decorrido o tempo necessário para que o milho secasse bem, chegava a vez da escarola, na qual eram então utilizados três processos, dependendo a utilização de um ou de outro das disponibilidades da eira e das posses do seareiro: o mangual, a escaroladora manual e a escaloradora movida a motor.  Mangual, cada um tinha o seu, embora fosse já muito pouco usado para escarolar o milho. Mas era com ele que se malhavam todos os legumes. A escaroladora manual era propriedade do dono da eira, que normalmente não tinha mais que uma, o que obrigava os seareiros a marcarem a sua vez junto do encarregado da eira. Era de utilização gratuita e exigia força, para dar à manivela. Tarefa para os homens e rapazes, que nela se revezavam. Também acontecia agarrarem-se dois à manivela, para lhe darem maior ímpeto. A escaroladora a motor era pouco usada. Apareceu a certa altura, propriedade do António Palmeirão, um pequeno proprietário, que a alugava a troco de uma parte do milho escarolado.

O milho era depois novamente espalhado na eira e remexido duas ou três vezes, arrastando-se por ele os pés ou um ancinho de madeira, para secar bem. Quando já bem seco, era amontoado e passado à tarara, instrumento, também manual, que fazia voar as impurezas através do vento que produzia.
Finalmente, estava o milho pronto para a partilha. Chegava-se o medidor com o alqueire e com os sacos do patrão, e o seareiro com os seus. E a partilha era assim: ao quinto (de cada cinco partes, quatro para o dono da terra e uma para o seareiro), se a seara fora de sequeiro; ao sexto (cinco para o dono da terra, uma para o seareiro), se a seara fora de regadio. Exploração pura e dura. E partilha igual era a do feijão branco e a do feijão frade, a do grão de bico e a das abóboras.


Em anos de boa colheita, ficavam as arcas com milho e feijão que davam para todo o ano ou quase – e era uma alegria. O pior, é que nem sempre assim acontecia. Havia anos maus.


sábado, 26 de janeiro de 2008

A Praça !


“Praça” era a designação do local onde, aos Domingos, depois do almoço e envergando os seus fatos e vestidos domingueiros, separadamente se juntavam os homens e as mulheres em busca de patrão para a semana seguinte, pois que para contratarem o pessoal de que necessitassem lá estariam igualmente os capatazes ou os patrões cuja riqueza não dava para meter capataz, que era o caso do patrão-seareiro. Mais adiante veremos o que chamo eu de patrão-seareiro, para o diferenciar do patrão-lavrador.

Em três locais diferentes e por esta ordem conheci eu a “praça”: no cruzamento da Rua de Santo António com a estrada que vai para a Azinhaga; junto à taverna das Motas, que confinava com o recinto da igreja; e no adro da igreja. Era um tempo em que raramente passava um veículo puxado por animais ou um ciclista, e mais raramente ainda um veículo motorizado. E, por isso, o pessoal ocupava a estrada. 
Do primeiro local (Santo António) mal me lembro, e não me recordo onde é que as raparigas se concentravam, mas existia ali um sítio bom para isso: era o pequeno pátio em frente da casa para onde, depois de casado, foi morar o Veríssimo Duarte. No segundo, concentravam-se para lá do gradeamento que delimitava o recinto da igreja e junto à porta de trás do Registo Civil. No terceiro, junto à porta da frente do Registo Civil e à porta lateral da igreja, tirando partido, para se sentarem, do longo poial que ali se situa.

Confinando com qualquer desses locais, não faltavam as tavernas. No primeiro, duas, cada uma na sua esquina e de cujos donos não me lembro os nomes. A da esquina do lado da Azinhaga era dos sogros do Manuel da Carlotina, negociante de cavalos e que também ali vivia, com a mulher e as duas filhas. A da outra esquina (que, se a memória me não atraiçoa, era dum avô do Manuel Gameiro, conhecido por “o Menino”, que foi para a CP e casou com a filha única do António Santana, também ferroviário) foi deitada abaixo, em Janeiro ou Fevereiro de 1941, pela força da corrente das águas da cheia que, com a ultrapassagem e derrube de uma parte do Dique dos Vinte, no campo da Golegã, enfiaram pela estrada que, ligando a Azinhaga e o Pombalinho, ficava a um nível inferior ao dos terrenos limítrofes, quase na sua totalidade constituídos por olivais.
Essa foi a maior cheia registada no Pombalinho até então (1941), e além da casa (loja e habitação, como era de norma) derrubada pela força da corrente que lhe batia em cheio, ruíram com essa cheia mais umas seis ou sete moradias, devido, sobretudo, aos materiais da sua construção: taipa e adobes. E muito pior teria sido se um ciclone que abalou a região pouco tempo antes tivesse ocorrido na altura da cheia. Uma das coisas que desapareceu com esse ciclone foi a tamareira da Quinta da Melhorada, a única conhecida pelos arredores e à qual eu e outros miúdos algumas vezes, nas nossas deambulações aventureiras, fomos atirar pedras para deitar tâmaras abaixo, apanhá-las e comê-las.

Porém, o que mais espantou toda a gente, naquele ano e com aquela cheia, foi o buraco, com muitos metros de diâmetro e três ou quatro de profundidade, que a corrente vinda do lado da Azinhaga, ao bater na parede da casa que ali derrubou e fazer redemoinho, abriu bem no centro do cruzamento. Por sorte, ninguém nem algum animal caiu no buraco antes de o mesmo ter sido descoberto, pois que a água ficou bastante alta. Tão alta que, da casa da outra esquina, a dos sogros do Manuel da Carlotina, como já vimos (e também taverna, mercearia e habitação), foi necessário tirar o seu proprietário, já velhote e por se encontrar doente, pelo telhado, para metê-lo num barco e levá-lo dali para onde pudesse receber a visita do médico. O buraco levou, depois, algum tempo a tapar, e até talvez tenha sido isso que deu origem à mudança do local da “praça” dali para junto da loja das Motas e do edifício do Registo Civil, local que, para além do mais, ficava num ponto bastante mais alto.

Na “praça” não faltava, geralmente, dinheiro para um copito. Copito... é como quem diz, porque o copo mais vezes pedido era o copo de 0,5 litro, que não é assim tão copito como isso. De vinho tinto ou branco, conforme as preferências. E que muitos emborcavam de uma vez, ficando a limpar os lábios às costas das mãos. Mas também acontecia pedir-se o copo de 2,5 decilitros. E até algum mais pequeno, uma vez por outra. Tinha a ver com as disponibilidades financeiras do bebedor e com o seu nível de saciamento.
Mas, além do que se bebesse por conta própria ou por oferta de um companheiro, todos os que arranjassem trabalho tinham direito a 0,5 litro de vinho (às vezes substituído por água-pé), os homens, e a 2,5 decilitros, as mulheres (as raparigas, melhor dizendo),dado pelos patrões. Era a melhadura, que, uma vez aceite, tinha o valor de um contrato que prendia o trabalhador ao patrão por toda a semana. Digo: uma vez aceite, e não: uma vez bebida, porque as mulheres, no Pombalinho, não bebiam. Era de mau tom. Por isso, iam todas de garrafinha para a “Praça”, na qual levavam a melhadura para casa.

“Melhadura”, acho que é como nós pronunciávamos, no Pombalinho. Contudo, não encontro essa palavra em nenhum dicionário consultado. Encontro é “molhadura”, com o significado de «o m.q. molhadela; (pop.) gorjeta que se dá para comprar vinho; gratificação» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 6ª edição). Parece não andar lá longe, pelo que poderemos considerar dois aspectos: ou “melhadura” como regionalismo e com aquele significado preciso de selar o compromisso do trabalhador com o patrão para a semana seguinte, ou como a corruptela de um termo de uso mais geral e de significado algo diferente mas que no Pombalinho e arredores (Azinhaga do Ribatejo e Reguengo do Alviela, pelo menos) adquiriu o referido significado.

Seja como for, o certo era que fora a melhadura, ao Domingo, na “praça”, que era obrigatória, às vezes, durante a semana, a pedido dos trabalhadores ou por iniciativa do patrão, também havia com que “molhar a garganta”. Valia, então, a generosidade dos patrões, tanto podendo acontecer, no entanto, que a bebida fosse levada para o local de trabalho e aí consumida durante o dia, como serem os trabalhadores mandados passar pela adega, à noite, depois de despegarem do trabalho.

Mas também acontecia , nos dias maiores, que eram precisamente aqueles em que as tarefas agrícolas eram em geral as mais árduas, fazer parte das condições ajustadas ao Domingo, na “praça”, ter o trabalhador direito nessa semana, além do salário, a determinada quantidade de vinho por dia, quantidade essa variando, a maior parte das vezes, entre um litro e litro e meio. Sim, isso acontecia, o que significa que poderia suceder ou deixar de suceder. Mas só assim era em relação ao patrão-lavrador. Com o patrão-seareiro não acontecia, era de norma. Como era de norma este pagar sempre mais alguma coisa de jorna do que aquele. O que se justificava pelo seguinte: o patrão-lavrador era dono de terras, de vinhas e de olivais e, em maior ou menor quantidade, trazia sempre alguém por sua conta; o patrão-seareiro era aquele que alugava um ou dois hectares de terra ao lavrador para fazer a sua seara, nesse tempo predominantemente de melão, e que, por conseguinte, só ia à “praça” quando precisava de pessoal para o cultivo dessa seara, coisa que normalmente não ia além de uma ou duas semanas.

Mas havia outro pormenor que importa considerar. Era que a necessidade de pessoal por parte dos seareiros ocorria numa altura em que a procura de pessoal era maior, acontecendo que os lavradores poderiam muito bem absorver então todo o pessoal da “praça” para os seus trabalhos. Ou seja, os seareiros iam “roubar-lhes” o pessoal de que eles precisavam, por um lado, e, por outro, ao tornarem a procura maior que a oferta para além do que ela de qualquer maneira já seria nessas alturas, mais faziam subir o preço da jorna. Também se poderia dizer que, se assim era, isso aos próprios lavradores se devia, uma vez que eram eles mesmos que alugavam aos seareiros a terra em que estes faziam os seus meloais para abastecerem o mercado do Porto, pois era para lá que era levada, por caminho de ferro, a quase totalidade da produção local.

Saliente-se ainda que um factor não menos importante na diferença do salário pago pelos lavradores e pelos seareiros, ou pelo menos da sua expressão em números, era haver quase sempre um retraimento dos trabalhadores em irem para os seareiros, por recearem que os lavradores (ou os seus capatazes) os tomassem de ponta e os deixassem de fora sempre que, na “praça”, a oferta excedesse a procura, o que por vezes acontecia, sobretudo nos meses de Inverno.

Eu comecei a frequentar a “praça” muito cedo, porque comecei a frequentá-la pela mão do meu pai. Com efeito, acho que aí com os meus sete/oito anos já o meu pai me levava com ele à “praça”. Eu gostava de acompanhá-lo. Primeiro, porque, em geral, os miúdos gostam da particular atenção dos pais e, naquela idade, talvez ainda mais da atenção do pai, especialmente os rapazes, do que da atenção da mãe. Depois, porque gostava da atenção que, na “praça”, me dispensavam os companheiros do meu pai, ou seja, de ser alvo da atenção dos adultos. E, ainda, porque sempre havia ali uns tremoços e uns amendoins para trincar, acompanhando a pinga... a pinga que eu julgo ter começado aí a provar, sabendo-me bem.

A “praça” era o grande ponto de encontro e de convívio dos camponeses. Depois do almoço, que ao Domingo era mais tarde (lá para o meio-dia) e melhorado, os trabalhadores vestiam o seu fato domingueiro e dirigiam-se para a “praça”. Ali se iam juntando, homens e raparigas, em grupos separados que iam engrossando e se iam subdividindo em grupos mais pequenos, em função de afinidades ou interesses comuns. Entretanto, os homens iam fazendo a sua peregrinação às tavernas próximas; os copos iam-se enchendo e esvaziando. Uma ou outra laranjada, gasosa ou limonada ia saindo também, na sua maior parte para as raparigas, que iam consumi-las no seu grupo, lá fora, e vinham depois devolver as garrafas.

Reinava a animação no local da “praça” e num raio para aí de cinquenta metros, em que as tavernas eram seis: a das Motas, a do José Taverneiro, a do António de Casal (que bebia mais que os clientes, os quais, de resto, eram muito poucos), a do Manuel Tadéia (e depois do genro e da filha: o Diamantino Costa e a Deolinda), a do José Guilherme e a do Mota Alegre. Bebia-se, conversava-se, caminhava-se para um lado e para o outro, com os problemas da vida postos para trás das costas por algumas horas, pelo menos quando já se tinha a certeza de sair dali com patrão, o que geralmente ocorria nos períodos em que o pessoal não chegava para as necessidades e quando se fazia parte de um rancho de carácter mais ou menos regular por conta de determinado lavrador. Isso não dispensava, porém, a ida à “praça”, salvo em casos em que o trabalhador, por qualquer motivo (visitar familiares, ir a uma feira ou a uma festa nas redondezas) desejasse ausentar-se da terra no Domingo e, para o poder fazer sossegadamente, acertasse as coisas com o seu capataz.

Os empregadores (agora chama-se-lhes assim) ou seus representantes (os capatazes) começavam a chegar mais tarde, juntando-se aos trabalhadores e sondando o ambiente. No fim de contas, capatazes e trabalhadores eram todos companheiros. O capataz não passava de um camponês escolhido pelo patrão para assumir certas responsabilidades, entre elas precisamente a de ir à “praça”, aos Domingos, arranjar o pessoal necessário para os trabalhos a decorrerem na semana contígua. Outras eram velar por que o trabalho fosse bem feito, não deixar o trabalhador descuidar-se na execução das suas tarefas, dar a ordem de pegar e despegar, de manhã, às horas das refeições e à noite. Tudo isso, mesmo quando tinha de emparceirar ao lado dos companheiros, fazendo o mesmo trabalho, o que era de norma quando aqueles não excedessem um certo número. Não estou certo de qual era esse número, e nem sei se esse número era igual para todos os capatazes. Creio, no entanto, que andaria entre oito ou dez trabalhadores.
O capataz, enquanto tal, fazia parte da categoria dos criados, que eram aqueles cujas ocupações se não podiam regular pelo horário dos restantes camponeses (abegões, maiorais, guardadores de gado, guardas das propriedades, hortelãos, boieiros, cocheiros, etc.) e cuja remuneração era constituída, mensalmente, por uma parte em dinheiro e outra em bens de consumo, a chamada comedoria: tanto de feijão, tanto de azeite, tanto de milho, além, nalguns casos, de uma manta e de um par de sapatos anualmente ou de dois em dois anos.

Na “praça”, com todos a postos (trabalhadores e capatazes), chegava então a hora das negociações, com cenários algo diferentes consoante a ocasião fosse de oferta maior que a procura ou vice-versa, o que muito tinha a ver com a época do ano em que se estivesse: pouco trabalho e salários mais baixos nos meses de inverno, com o campo, entre a margem direita do Tejo e a esquerda do Alviela, inundado às vezes durante semanas; muito trabalho e melhores salários no resto do ano.
No primeiro caso, o assunto resolvia-se rapidamente. Os capatazes juntavam os seus homens, primeiro, e as suas mulheres, depois, à sua volta, lançavam o preço da jorna para a semana que se seguia, x para os homens, metade disso ou pouco mais para as raparigas, e assunto arrumado, cada grupo a caminho da adega do respectivo patrão para o fecho do contrato, que é como quem diz, para o recebimento da melhadura, que, como já disse, os homens consumiam logo ali e as raparigas levavam para casa, em geral em garrafas de refrigerantes. No segundo caso (procura maior que a oferta), a história era outra, especialmente quando chegava a altura dos patrões-seareiros engrossarem a procura. O pessoal era então disputado. E, naturalmente, tirava partido disso. Cada empregador ia tentando organizar o seu rancho e lançando a sua oferta de salário... e o pessoal fazendo finca-pé.

Era a altura em que os novatos arranjavam pela primeira vez quem lhes pagasse “o preço dos homens”, e que “homens” ficavam daí para diante. Assim como era a altura em que os de mais idade arranjavam pela última vez quem os aceitasse por esse mesmo preço, tornando-se depois, uma boa parte deles, mendigos ou dependentes dos filhos (um mês em casa deste; outro mês em casa daquele... e voltando ao princípio), que nem para eles tinham que chegasse. O pessoal, reunindo e trocando impressões, ia então fazendo finca-pé... e o tempo passando... e as ofertas subindo. Até que, com uma ou outra excepção, se chegava a acordo, às vezes já noite adentro. E as excepções era não se chegar a acordo. Uma ou duas vezes me lembro disso ter acontecido, voltando todos à “praça” na segunda-feira de manhã, numa tentativa de se resolver o assunto ainda antes da hora de pegar ao trabalho, que na segunda-feira era às 10 horas, com o almoço já tomado.

De um Domingo me lembro eu em que a jorna deu um salto como, suponho, nunca antes teria acontecido. Andava eu a trabalhar para os Menezes (Menezes e Irmão) como “criado dos mandados”, uma espécie de pau para toda a obra que ocupei durante 15 meses e sobre que noutra parte destas minhas “Memórias” certamente me debruçarei com mais pormenor. Tinha 13 ou 14 anos. Estávamos, pelas minhas contas, em 1942, naquela altura do ano em que a procura, na “praça”, atinge o auge, com os patrões-seareiros a chegarem em força.

A “praça” era então junto à taverna das Motas e eu tinha acabado de largar o serviço, porque ao Domingo saía ao meio da tarde. E foi assim que, passando pela “praça”, pude dar-me conta que a jorna tinha acabado de atingir, para os homens, 20$00 (20 escudos), quando, na semana anterior, a jorna fora de 7$00. E ficou pelos 20$00, o que já não posso afirmar é se esse foi o preço dos seareiros, se o dos lavradores, que, normalmente, ficava um ou dois escudos abaixo.

Nas épocas de aperto (chamemos-lhe assim) imediatamente anteriores, com certeza que a jorna tinha já chegado acima dos 7$00, mas nada que se parecesse com os 20$00, para os quais os 7$00 haviam acabado de dar agora um salto de praticamente o triplo. Nesse Domingo deve ter-se bebido algum copito mais do que habitualmente, nem que fosse fiado. 



sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

O Azeite !


O azeite era outro produto obtido através do rabisco. Trabalho das mulheres casadas, das viúvas e da miudagem. Como no rabisco do trigo. Como no amanho das searas. Como em tudo.
Começava-se pelo carocinho. Era a azeitona ainda muito verde, pequena, mas que já dava azeite. Os donos de alguns lagares, no Pombalinho e em São Vicente do Paul, faziam saber que já aceitavam a azeitona e quanto davam de azeite em troca de uma suta, a medida da azeitona. Foi, de resto, nessas andanças que eu conheci alguns locais onde, de outra maneira, nunca teria posto os pés (descalços...).
A apanha do carocinho (do que ia caindo, claro) era livre. Até que, com a azeitona já a começar a amadurecer e a quantidade de azeite em troca de cada medida a crescer, os proprietários mandavam lavrar um rego à volta dos olivais, sinal de que daí por diante era proibido apanhar azeitona sem o consentimento deles. E para fazer respeitar a proibição, lá estariam os guardas.

O consentimento dos proprietários, geralmente transmitido por algum dos seus servidores mais próximos, não se fazia esperar sempre que já houvesse muita azeitona no chão, o que era mais que certo depois de uma boa chuvada ou de uma boa ventania, quando não das duas coisas ao mesmo tempo. Mas também não era de graça. Para isso, não se justificaria a proibição. Era ao terço: duas partes da azeitona apanhada para o dono do olival, uma para quem a apanhava. Isto, quando o dono não optasse por pôr os seus porcos a comê-la. Era o que às vezes fazia o João d’Assunpção Coimbra, um dos dois, de resto, que, se me não engano, tinham por ali grandes varas. O outro era o Veiga (os dois latifundiários da região, no fim de contas), e o maioral dos seus porcos, naqueles tempos (décadas de 40/50), era exactamente o avô de que o José Saramago tanto fala, e sempre com a maior veneração: o alto e seco, fisicamente falando, Jerónimo, com o qual algumas vezes (poucas) calhou cruzar-me pelos campos e olivais da Azinhaga. Mas nos intervalos das apanhas consentidas as mulheres e os miúdos não ficavam à espera. Mesmo os olivais maiores não tinham mais que um guarda.

Dos guardas das vinhas se diz que não são eles que as guardam, mas o medo, coisa que, naturalmente, se pode dizer de tudo ou de quase tudo que meta guarda. Portanto, mesmo fora das apanhas autorizadas e divididas, sempre se ia deitando mão a uns bagos. Até porque sempre havia bagos que se podiam apanhar sem perigo. A maior parte dos olivais confinava por todos os lados com estradas que, não sei lá porquê, ficavam a um nível inferior. Uma dessas estradas, passando ali por entre olivais e dividindo-os, era conhecida por “a estrada real”. Dizia-me o meu pai que era a estrada por onde antigamente passavam as comitivas reais nas suas deslocações por aquelas bandas.

Ora, as abas das oliveiras que ficavam junto aos valados pendiam para as estradas contíguas, pelo que a azeitona que delas caía ficava aquém dos regos da proibição. E então era ver as mulheres, manhã muito cedo, normalmente em grupos de duas ou três, tentando serem as primeiras a chegar às estradas para onde as abas das oliveiras pendiam, a fim de deitarem a mão à azeitona caída durante a noite. A essa... e a mais alguma, se o guarda não estivesse por ali ao alcance da vista. O que não era isento de risco, sobretudo nos olivais do João d’Assumpção Coimbra, quando ele punha também soldados da Guarda Republicana a vigiar-lhe os olivais. E o pior era que a multa tinha de ir pagar-se a Santarém. Não sei se a mesma poderia ser paga no acto da sua aplicação, mas ainda que assim fosse, isso de nada serviria. Onde é que estava o dinheiro para se poder pagar logo? O que sei é que também calhou uma vez à minha mãe ser apanhada e não perdoada; e que teve de ir pagar-se a multa a Santarém.


Mas, enfim, litro a litro lá se ia enchendo a talha com o azeite trazido dos lagares, em troca da azeitona lá entregue. Em anos de boa produção - e de boa apanha! – chegava a ficar-se com azeite para todo o ano.Tanto da azeitona ainda verde como da madura, acontecia também escolher-se alguma para adoçar. Antes de ser metida na água, a azeitona verde levava uma pancadinha com qualquer peça de madeira que desse para isso, fazendo de maço; a madura levava alguns golpes longitudinalmente. Passadas duas ou três semanas, durante as quais se procedia várias vezes à mudança da água, era mais um conduto de que se dispunha, para alguns dias, sem necessidade de ir comprá-lo à mercearia.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Rabisco do Trigo !


Mas nem só de pão de milho eram as cozeduras das mulheres do Pombalinho. Também as havia de pão de trigo (ou melhor, de pão alvo, que era como lhe chamávamos), preparadas com o trigo que se apanhava no rabisco, um mais dos afazeres das mulheres casadas e, quando os havia e estavam disponíveis, dos filhos pequenos. Mas também aí havia partilha com o dono da seara. Não estou já bem certo, mas creio que era a meias.

Depois do trigo ceifado e transportado para a eira, em paveias, ficavam sempre espigas pelo chão. Os donos, que, como se vê, não desperdiçavam nada, determinavam então um dia para o rabisco. E lá ia o mulherio mais a garotada, manhã muito cedo, para apanharem as espigas ainda amaciadas pelo cacimbo da noite e poder-se, assim, juntá-las em mancheias (as matanas, nome que não encontro nos dicionários) atadas com as próprias hastes, coisa tornada impossível de fazer com as espigas inteiriçadas pelo sol. Além de se tornar desagradável manusear as espigas quando secas. Arranhavam.
Como a quantidade não era grande, o trigo era depois debulhado em casa, à mão. E assim comíamos pão alvo durante duas ou três semanas. Sabia muito melhor que o pão de milho. Pena era que fosse tão pouco. E aqui não posso deixar de contar um episódio passado com a minha mãe.

O tempo do rabisco do trigo era o tempo em que havia umas noites de luar tão vivo que mal dava para se distinguir a noite do dia. Era em Agosto, e por isso se lhe chamava mesmo o luar de Agosto.Naquela madrugada havia rabisco numa seara dos Menezes (Meneses&Irmão, que mais tarde acabaram com a Sociedade), pelo que a minha mãe teria de levantar-se ainda mais cedo que de costume, tanto mais que ainda antes de sair de casa teria que deixar o café (assim designávamos o mata-bicho, porque ele consistia na generalidade em café de cevada e chicória com migas) pronto para o marido e para os filhos e o farnel aviado para o meu pai levar para o trabalho. 

Despertador, não havia, e bom jeito faria em tais ocasiões. Tinha de se confiar na capacidade de acordar na hora pretendida. Pois bem, a certa altura a minha mãe acordou. E que viu ela? A claridade do dia a entrar já pelo telhado, de telha de canudo e sem forro (isso só nas casas dos mais abastados). Levantou-se, assarapantada, vestiu-se o mais apressadamente que foi capaz, e ala!, aí vai ela... Começou por estranhar um pouco, ao fim de um certo tempo de caminhada, não ver ninguém, mas não havia que olhar para trás. E enfiou pela estrada que da povoação a havia de levar à seara a rabiscar. Dum lado e doutro, sebes, e só sebes, de silvas e de marmeleiros. E o sino da torre da igreja começa a soar. Uma... duas... três... Três marteladas, fortes, desferidas pela maquinaria do relógio da torre. Três horas da manhã, só. E a Ermelinda, só também, fora de casa, àquela hora, no meio da Estrada do Bornel, uma estrada tenebrosa!...

Coitada da Ermelinda!


quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

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Guilherme Afonso é bem o exemplo dos que deixando pelo caminho da vida as suas origens, nunca permitiu que o tempo e a distância interviessem no apagamento das suas memórias. E se sem ela, jamais poderemos compreender os tempos presentes, percorremos então estas belas ilustrações escritas do nosso Amigo Guilherme e com toda a certeza ficaremos perfumadamente mais próximos das tristezas, amarguras mas também alegrias de muita gente do Pombalinho a que só a memória da alma nos permite reviver!