E também trabalhei numa
adega, em 1949, no ano imediatamente anterior, portanto, ao do meu alistamento
no serviço militar. Foi na Adega Nova, a maior do Pombalinho. Era a adega
das Meiras, de Alpiarça. Tinham uma grande vinha no Reguengo do Alviela e as
uvas eram transportadas pelo José Leal, na sua camioneta de aluguer, da vinha
para a adega. Passava pela rua em que eu morei até aos 16 ou 17 anos (Rua
Carolina Infante da Câmara) e nunca vi aquelas uvas terem sido transportadas de
outra maneira.
Quando era miúdo, algumas vezes roubei uvas da camioneta, com
outros miúdos. Deve, com certeza, ter sido uma prática de todas as gerações de
miúdos das proximidades. Aproveitávamos uma curva muito apertada que a
camioneta tinha que dar ao entrar no Pombalinho, carregada, e duas acácias
plantadas ali mesmo à beira da curva, atrás das quais nos escondíamos à espera
que a camioneta nela entrasse. Corríamos então para a camioneta, pela parte de
trás, trepávamos, agarrados aos taipais e, com os pés em cima do pára-choques,
deitávamos as mãos aos cachos que enchiam, até bem ao cimo, dois grandes
recipientes metálicos (tinas) ajustados às dimensões da carroçaria, e toca a
pirarmo-nos.
A vindima das Meiras levava cerca de um mês, feita por um rancho
de uma trintena de raparigas. E um rancho de outros tantos homens (mais homem,
menos homem) levava o mesmo tempo a fazer vinho na Adega Nova. O que quer dizer
que pisei muita uva; fiz muita força agarrado às alavancas das prensas para se
espremer até à última gota o mosto que as uvas ainda tinham para deitar;
carreguei aos ombros muito cesto bem cheio de engaço, e bem pesado, dos
patamares para depósitos cavados no chão, de onde haveria de ser depois levado
para o alambique, para dele se extrair a boa bagaceira.
Além do vinho, nas adegas também se fazia sempre, e continua a
fazer, pelo que sei, alguma água-pé, bebida de baixo teor alcoólico cujas pipas
se abrem pelo São Martinho, em Novembro, consumindo-se a água-pé sobretudo no
inverno, quando, fresquinha, e ao ser servida como deve ser, se vêem bolhinhas
a subir por ela acima. Agora, que eu sei o que é champanhe, não me parece
descabido chamar à água-pé o champanhe dos pobres.
Para fazer a água-pé, espalha-se no patamar, antes de ser
exprimido até ao fim, o engaço que esteja a ser prensado, espalha-se-lhe alguma
água por cima, mistura-se bem, e volta a ser prensado.
Saiba-se que, tanto na adega como no lagar, o horário de trabalho
não era o habitual de sol a sol. Pela
especificidade dos procedimentos inerentes ao fabrico do vinho e do azeite,
tinha normalmente de entrar-se a trabalhar pela noite dentro. Mas o salário era
o ajustado no início, contando-se já com essa especificidade. Quer dizer, não
havia horas extraordinárias.
Num dicionário consultado (“Dicionários Editora da Língua
Portuguesa”, da Porto Editora Multimédia), adega é a “parte de uma casa em que se
guarda o vinho ou o azeite e outras provisões”, e lagar é, numa das suas
acepções, “casa com aparelhagem para se fazer vinho ou azeite”, ou seja, adega e lagar são igualmente aplicáveis no que diz
respeito ao vinho e ao azeite.
Sucede o mesmo em relação a bagaço (“resíduo de alguns frutos, caules ou
colmos, depois de pisados e espremidos, como o de uva, o de azeitona, e de
cana-de-açúcar, etc.”), mas já em relação a engaço, uma das suas acepções,
aquela que para aqui nos interessa, o define como “parte que fica do cacho de
uvas depois de esbagoado”, se bem que no mesmo dicionário bagaceira tenha como definição “aguardente do
bagaço de uva” (o sublinhado é meu). Noutros dicionários consultados, não
encontrei diferenças dignas de nota.
Pois bem, no Pombalinho, adega é a casa onde se faz e se guarda o
vinho; lagar é - embora, pelas razões atrás
aduzidas, hoje certamente já só como conceito - a casa onde se faz e se guarda
o azeite; bagaço são os resíduos da azeitona, e engaço os resíduos dos cachos de uvas. O que
leva a uma conclusão: é a sabedoria do povo a fazer uso da semântica, para
claramente se entender.