quarta-feira, 23 de abril de 2008

As iguarias


Ao tender, uma vez por outra sobrava, ou fazia-se sobrar, um bocado de massa para uma destas iguarias: ou um pãozinho em que se misturava canela, e creio que azeite, na massa; ou um pãozinho em que se metia na massa uma gorda sardinha, depois de amanhada, e que ficava com a forma da sardinha, ou seja, oblongo.

Eram as iguarias dos pobres, que como essas tinham várias outras e das quais se dizia que eram de lamber os beiços ou de comer e chorar por mais. Com o pão de milho por base, de mais duas me estou a lembrar e não resisto a descrevê-las. Uma era a tiborna. Logo ao tirar-se o pão do forno - bem quente, portanto - partia-se um naco em bocados pequenos, não muito, para um prato. Juntava-se-lhe azeite e alho e misturava-se tudo bem. E comia-se logo a seguir. Outra era cortar uma fatia de pão, fazer-lhe uns traços à superfície, com um canivete, e pô-la nas brasas. Depois de bem torrada, friccionava-se bem com um dente de alho e cobria-se com um fio de azeite, dos dois lados. Esta fazia-se, às vezes, para as refeições no campo. E era mesmo de comer e chorar por mais.


sábado, 19 de abril de 2008

Saramagos e cangarrinhas


Do saramago, que consta nos dicionários dos vários autores e editoras que consultei, dizem os mesmos, resumindo, que se trata de uma planta comestível; e da cangarinha, que não consta de todos aqueles dicionários, que se trata de um cardo frequente em Portugal, também conhecido por cardo-de-ouro.

Ora, no Pombalinho, tão comestível era o saramago como a cangarinha. Isto, se cangarinha, segundo os dicionários, é a mesma planta, e tudo me leva a crer que sim, a que no Pombalinho, provavelmente por corruptela, chamávamos cagarrinha.   certo é que tanto um como a outra vinham em boa altura, porque vinham no tempo em que o dinheiro era ainda mais escasso que no resto do ano. Ou seja: vinham no inverno, quando, não só por causa das cheias, mas também por essa ser, já de si, uma época em que a actividade agrícola abrandava, muitos camponeses às vezes ficavam semanas sem trabalho.

Deitava-se então mão ao saramago e à cangarinha, que despontavam sobretudo nas terras semeadas de trigo. Os proprietários não se opunham. Tratando-se de ervas daninhas, até lhes dava jeito. Já ficava menos erva para mondar, mais um trabalho que eu fiz, tinha doze ou treze anos, metido num rancho de mulheres. Hoje, com os herbicidas, já não há mondas, naturalmente. E saramagos? E cangarinhas? Ainda haverá? No prato dos pobres, pelo menos, o mais certo é já não haver. Pobres que, de resto, e falando dos da minha terra em particular, são hoje, e ainda bem que assim é, muito menos pobres, Quanto mais não seja devido à assistência social de que actualmente fruem e que naqueles tempos, com excepção de consulta médica duas ou três vezes por semana, na Casa do Povo, para os sócios e familiares de si dependentes, era igual a zero. Note-se que como sócios da Casa do Povo só eram admitidos os trabalhadores rurais, terminologia oficial, ao tempo, para os mais vulgarmente chamados trabalhadores do campo, e que a quota mensal era de 3$00 (três escudos). Significa isso que os operários não eram aceites como sócios, não beneficiando, por conseguinte, da referida assistência médica.

Os saramagos substituíam as couves e os nabos. Muito simples, portanto. As cangarinhas não substituíam nada, acho eu. Como dizem os dicionários, trata-se de um cardo. E os cardos têm espinhos. Mesmo sendo de ouro, como, segundo ainda os dicionários, se chama a este. Por isso, ripava-se a nervura central das folhas, a qual era depois cortada em bocadinhos e cozida com feijão branco e chispe ou orelha de porco. Fazia um belo prato. Só que um bocado mais caro, por causa da carne. Por isso, e creio que também por ser precisa muita cangarinha para uma só refeição, comia-se muito menos vezes cangarinhas que saramagos.

Falando em saramagos, não pode deixar de vir à baila a história do José Saramago. Como ele próprio tem dado a conhecer, Saramago era alcunha da família paterna, tendo passado, nele, por lapso do empregado do registo civil que tratou do seu registo de nascimento, a apelido. Os restantes Saramagos da Azinhaga continuaram a sê-lo por alcunha e, muito provavelmente, a passarem a alcunha aos filhos.


O mais interessante, porém, e por isso este intróito a propósito da família Saramago, é que também havia, na Azinhaga, pelo menos um Cagarrinha (neste caso mantenho a corruptela, já que era assim mesmo que chamávamos àquele companheiro). Sim, companheiro, o Cagarrinha, tanto como um dos Saramagos, o João, salvo erro. Companheiros, umas vezes, e outras adversários. Com efeito, houve um tempo em que jogámos os três na mesma equipa de futebol, a da Azinhaga, num campeonato da FNAT ( Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho). Como o Pombalinho não tinha uma equipa de futebol devidamente organizada e oficializada, e por isso não estava em condições de entrar fosse em que campeonato fosse, quando a Azinhaga entrou no tal campeonato da FNAT e o Augusto Souto Barreiros me convidou para ir jogar pela Azinhaga, eu fui. Eu, mais os irmãos António e José Leal, o António Maria Duarte, filho da Isaura (havia outro António Maria Duarte, dois ou três anos mais novo e filho do Izidoro Duarte “Sapateiro”) e o Manuel “Barão” (Manuel António Correia Bento). Mas muito mais vezes fomos adversários. Fomo-lo nos jogos que desde adolescentes combinávamos, os do Pombalinho e os da Azinhaga, e em que eu jogava pela minha terra e eles pela sua. E que, sem balizas a sério e sem árbitro nem juízes de linha, raramente chegavam ao fim, por desentendimento nas faltas e na validação dos golos.


quarta-feira, 16 de abril de 2008

A casa, o gado e a criação


As casas das famílias camponesas eram casas térreas, geralmente com duas divisões: cozinha e casa de fora. Uma ou outra tinha a casa de fora dividida, dispondo, assim, também de um quarto. Algumas famílias tinham casa própria; as restantes viviam em casa alugada. E toda a casa tinha o seu quintal, no qual se criavam galinhas e coelhos (mais coelhas que coelhos), um porco ou uma porca, às vezes um carneiro ou uma ovelha, e se tinha uma cabra.
Com as galinhas havia sempre um galo, pelo menos, para as galar. E com as coelhas, um coelho, para as cobrir. O objectivo era a produção de ovos e de carne, de que uma parte se consumia em casa: os ovos sempre que os houvesse e a carne nos dias de rancho melhorado (Domingos e feriados). A outra parte, menor no caso dos ovos e maior no caso de galinhas e coelhos, era vendida aos compradores que de carroça percorriam as aldeias a comprar tudo isso, para, pelo menos no caso do Pombalinho e aldeias próximas, abastecerem o mercado de Lisboa, para onde tudo era despachado em canastras, via caminhos de ferro. Tanto no caso dos galináceos como no dos coelhos, de cada nova ninhada os machos eram vendidos ou consumidos em casa logo que atingissem tamanho para isso, visto não darem qualquer outro rendimento. No caso dos coelhos fazia-se ainda algum dinheiro com as peles, vendidas aos mesmos compradores ou a ferros-velhos também ambulantes.

No Pombalinho havia um desses compradores, o Francisco Duarte, por todos mais conhecido por Chico Pardal, que também era barbeiro e bom actor cómico e que uma vez por semana, em dia certo, dava a volta à aldeia fazendo o seu pregão. Mas também por ali passavam, de vez em quando, não sei se igualmente em dias certos, um comprador de Vale de Figueira e outro do Sobral (São Vicente do Paul). Quanto a ferros-velhos, passou durante algum tempo pelo Pombalinho, de bicicleta, um de Alcorochel (Torres Novas), chamado José Moita. Deste lembro-me o nome porque mais tarde trabalhámos juntos no forno do Alviela.

Falando de galos, também posso falar de capões, que são galos castrados, ou melhor, capados, que era o termo que, naquele tempo e por aqueles lugares, eu e toda a gente conhecia e usava. Não sei se ainda se capam galos em algum lugar do mundo, mas é coisa que já se fez. Era eu miúdo, vi um capão (um galo enorme!) no Reguengo do Alviela e conheci o capador, então já um velhote. Quanto ao porco, de tempos a tempos passava alguém pela aldeia a vender bácoros. Comprava-se um, que ia para a pocilga e, passadas algumas semanas, mandava-se capar, para melhor encorpar. Com os testículos, bem assados e devidamente temperados, fazia-se um belo pitéu.

Diz-se que o porco come de tudo. Se assim não é, muito longe disso não andará. A esses porcos criados em casa dava-se, consoante a sua fase de crescimento e a época do ano, hortaliça e algumas plantas silvestres, cozidas e misturadas com farelos, bolota, abóbora, bagaço (e já disse que bagaço, no Pombalinho, eram os resíduos da azeitona) e milho. Restos de comida é que não era muito provável dar-lhes, pela simples razão de que seria mais difícil haver sobras de comida do que passar um camelo (ou será mesmo uma corda, como pretendem os exegetas?) pelo cu duma agulha. Quanto ao resto, a hortaliça também não seria muita, porque era preciso comprá-la; os farelos eram os que se obtinham ao peneirar a farinha para as coseduras semanais; as plantas silvestres e a bolota iam apanhar-se onde se soubesse que existiam; o bagaço, relativamente barato, era comprado à porta (a vendedores ambulantes), nalgumas lojas (na do Francisco Borges, por exemplo), ou directamente aos donos dos lagares, que o conservavam em grandes depósitos escavados no chão; a abóbora, aliás da espécie chamada porqueira, e o milho vinham das searas, conforme já foi dito. E dito foi também, na mesma altura, que o milho era dado ao porco quando a sua matança já estava para breve, por ser o que melhor o engordava e, creio eu, também porque dava melhor sabor à carne, assim se juntando o útil ao agradável.

A matança poucos a podiam fazer em casa, para meterem a carne na salgadeira e pendurarem os enchidos no fumeiro. A maior parte tinha de vender o bicho, para liquidar ou pelo menos amortizar a dívida na mercearia. Se a mercearia de onde cada família se abastecia, e onde, portanto, teria a dívida, também vendia carne de porco, era para aí que o animal normalmente ia, vendido à arroba (15 quilos). Se não, ia para outro lado qualquer, mas o dinheiro da sua venda tinha que ir, no todo ou em parte – uma boa parte – para a mercearia em que se tinha a dívida. Caso se quisesse, naturalmente, continuar a poder comprar fiado, na mesma ou noutra qualquer mercearia. Porque numa aldeia tudo se sabe. E sabendo-se, a respeito de alguém, que é caloteiro, o mais certo é acabarem-se-lhe os fiados.
Havia, de resto, famílias nessa situação. Por falta de orientação do chefe da família (por exemplo, ir este frequentemente para a taverna para beber uns copos ou para o jogo do chinquilho ou da bisca, o que também ia dar aos copos, ora a perder, ora a ganhar, e estava quase sempre associado ao hábito do cigarro); por falta de saúde; por falta de trabalho, coisa que podia agravar-se, neste último caso, se o chefe da família tivesse fama de calão. De resto, o mais certo era essas famílias nem porco criarem, por não conseguirem juntar o dinheiro para comprar o bácoro.

Uma cabra, só alguma das famílias que não criava porcos poderia não a ter também, e pelo mesmo motivo. A cabra normalmente comprava-se só uma vez, ainda pequena, também. Era a primeira que se comprava, depois de se constituir família. Acabada de criar, conservava-se, porque a finalidade era obter dela o leite, especialmente para a alimentação das crianças.
Quando chegava o cio, pedia-se a alguém que tivesse um bode, que é como quem diz, a algum lavrador que tivesse rebanho de cabras, para deixar levar a cabra ao seu bode, para a cobrição. Nascidas as crias, estas eram vendidas, geralmente para os talhos da terra. Só quando a primeira cabra já tivesse uns anos se ficava com uma das suas crias, vendendo-se então a mãe.

Um borrego comprava-se depois de marcada a data do casamento de um filho ou de uma filha, coisa habitualmente feita com alguns meses de antecedência, para criar e depois matar para a boda.
Ruminantes e roedores são herbívoros, como se sabe. O que significa que para se alimentar esta bicharada em casa era preciso ir-se à procura de erva e de rama ao campo, quase sempre furtivamente, porque tudo tem dono, e dono só dá quando colhe algum benefício do que dá. Era o caso da desponta do trigo. Havia searas a que convinha despontar o trigo em certa fase do seu crescimento. Não sei porquê, mas suponho que por se apresentar com um crescimento excessivo devido a condições climatéricas demasiado favoráveis. Então os donos tornavam público que quem quisesse ir despontar o trigo na sua seara situada em tal ou tal propriedade podia fazê-lo. Não faltava quem aproveitasse, exactamente para dar aos herbívoros que tinha em casa. E, assim, os proprietários evitavam pagar a quem fizesse o serviço. Lá diz a vox populi: viver não custa; o que custa é saber viver.

Fora isso, que era muito pouco, porque a bicharada tinha de comer todos os dias, pegava-se numa saca e numa foice, para a erva, ou numa corda e num serrote, para a rama, e partia-se para onde parecesse que melhor se poderia conseguir encher a saca ou fazer o molho. Este tornava-se um bocado mais difícil de fazer, porque era preciso trepar às árvores e serrar os ramos, salvo quando se tratasse da rama das oliveiras, porque, destas, o que o gado comia bem eram os rebentos, tenrinhos, nascidos na base dos troncos. As outras árvores cuja rama o gado consumia, e a que tinha mesmo de trepar-se para a colher, eram o choupo, o freixo e o salgueiro, abundantes na região.


Dada a dificuldade para as mulheres em subirem às árvores, maior do que para os homens, como facilmente se compreende, quanto mais não seja porque as mulheres não usavam calças e muitas delas nem cuecas tinha (está a ver-se o embaraço, não?), havia homens que se davam ao cuidado de providenciarem eles pela rama sempre que possível, chegando a irem buscá-la ainda antes de saírem para o trabalho, no qual, como já foi dito, tinha de pegar-se ao nascer do Sol. Outras vezes, era depois da despega – depois já do sol-posto, portanto - que ainda se metiam por algum arvoredo que ficasse no caminho, para cortarem uns ramos e carregá-los para casa.