Tinha eu entre 9 e 12
anos. Finais, portanto, da década de trinta e princípios da década de quarenta.
Numa população de cerca de mil habitantes que a minha aldeia teria nessa
altura, a maioria era, como em qualquer outro lado, gente pobre. Os ricos eram
meia dúzia de famílias. Mais meia dúzia de famílias, os remediados. Entre os
pobres havia também uma certa diferenciação. Verificava-se ela entre os que
tinham um ofício e os que o não tinham, porque não se chamava ofício, nem
chama, ainda hoje, ao manejo da enxada, da pá, da forquilha, do machado, do
serrote, da tesoura de poda, etc. Ofício tinham os pedreiros, carpinteiros, serralheiros,
geralmente trabalhando por conta de outros e já com as oito horas de trabalho
conquistadas, e os alfaiates, barbeiros, sapateiros, ferradores, ferreiros,
tanoeiros, marceneiros, em geral com o seu estabelecimento próprio e
trabalhando por encomenda. Estes não tinham horário de trabalho. Trabalhavam
mais ou menos horas, se necessário até aos Domingos, consoante as encomendas.
Os barbeiros, aliás, tinham a barbearia aberta aos Domingos, porque esse era um
dos dias em que tinham mais clientes, por ser o dia de descanso dos outros.
Para os trabalhadores rurais, ou agricultores, como também eram tratados os que
trabalhavam na agricultura, o seu horário era de sol a sol, o que significa que
iniciavam a jornada de trabalho quando o Sol despontava e só despegavam com o
Sol já escondido (Sol posto). Fosse qual fosse a distância a que ficasse o
local de trabalho. Para descanso e refeições havia uma hora, das 10 às 11
(almoço), enquanto que para o jantar havia 1 hora (das 14 às 15) durante uma
parte do ano (nos dias mais pequenos) e 2 horas (das 14 às 16) durante o resto
do ano. Como antes de sair para o trabalho toda a gente tomava a primeira
refeição (para a maior parte, e a maior parte das vezes, constituída por café
de cevada e chicória com migas) e à noite, no regresso a casa, se tomava mais
uma refeição (a ceia), as refeições eram, por conseguinte, quatro por dia.
Tudo isto para chegar aos mais pobres de entre os pobres, aqueles
que, além dos salários de miséria, viam as suas dificuldades acrescidas por
doenças, particularmente pela tuberculose. Procedia-se então a peditórios de
porta a porta, o que tinha de ser feito, já se vê, aos Domingos ou feriados.
Para isso era preciso que alguém se disponibilizasse para o efeito. Normalmente
duas pessoas. Uma que pedia, outra que escrevia o nome de cada contribuinte e a
respectiva dádiva. Sempre aparecia alguém, e muitas vezes eram os próprios que
iam de porta em porta, que, para ajudar um companheiro, tomavam a iniciativa.
O Augusto Anastácio era um desses. Ele e os meus pais eram
compadres, porque os meus pais haviam sido os padrinhos de duas filhas dele. Eu
também o tratava por compadre. Pois bem, de cada vez que o Augusto Anastácio,
analfabeto, como a quase totalidade dos camponeses com mais de vinte e cinco ou
trinta anos naquela altura (e ele já tinha mais de quarenta) – de cada vez que
o Augusto Anastácio, dizia eu, pensava fazer um peditório para algum
companheiro em maiores dificuldades, logo pensava em mim para o acompanhar, a
fim de registar os que davam e quanto davam.
E lá íamos então, eu e ele, bater a todas as portas:
- Dá alguma coisa ao necessitado?
- Quem é o necessitado?Dada a resposta, lá vinha, ou não vinha, a contribuição. Mas eram poucos os que não davam. Nalguns casos, por simplesmente não terem mesmo nada para dar. Com dádiva ou sem ela, havia sempre uma palavra de quem quer que atendesse. Em geral de consternação pela situação do conterrâneo caído em desgraça. Em geral... porque também acontecia ouvirem-se comentários depreciativos, críticas. Ou porque o necessitado ia gastá-lo em vinho, ou porque tinha chegado ao que chegara por falta de cabeça, ou porque mais necessitado sou eu, etc.
- Dá alguma coisa ao
necessitado?
E lá íamos recolhendo cinquenta centavos daqui, um escudo dali,
umas moeditas de vinte e cinco tostões ou de cinco escudos às portas dos ricos
e dos remediados. Era num tempo em que a jorna do camponês variava entre uns
seis ou sete escudos, nos dias mais pequenos (Outono, Inverno) e dez, onze ou
doze nos dias maiores.
Lembro-me que, pelo menos uma vez, fomos também ao Reguengo do
Alviela, que era a terra da minha mãe, um pequeno lugar a cerca de dois
quilómetros do Pombalinho. Por atalhos. Por estrada era um bocado mais. Suponho
que o fizemos porque o necessitado desse dia, embora morasse no
Pombalinho, era do Reguengo.
Completado o peditório, lá nos dirigíamos para casa do necessitado,
onde apresentávamos o valor recebido e a relação com os nomes dos que haviam
contribuído, e onde se petiscava qualquer coisa, com um copito de vinho a
acompanhar. Petisco e copito comprados, pelo menos na maior parte dos casos,
depois de chegarmos, já com dinheiro do peditório.
-Dá alguma coisa ao necessitado?