terça-feira, 10 de junho de 2008

Um Gigante


Está ali naquela cama. É o último da esquerda, cama 10.
Nas partes descobertas - o rosto, as mãos e os pés - a sua pele mostra uma tonalidade achocolatada
Se lhe perguntam o que tem, mostra os pés inchados e fala no coração. Pés grandes, enormes. Coisa para calçado número 44 ou 45. O coração não é coisa que se possa ver, mas quem o conhece sabe que ele tem um coração que abarca o Mundo. Foi da Guarda Republicana. Saiu, porque, como dizia, não nascera para aquilo.

Viu morrer-lhe uma filha de 18 anos, a Carolina, e resistiu. Tinha mais filhos. Tinha mulher. E amigos!... Ainda era preciso viver. Viu morrer-lhe um filho de 24 anos, o João, e continuou a resistir. Viu adoecer-lhe a mulher, penar anos e anos, morrer. E resistiu. Os outros filhos davam-lhe uma razão para isso. E, enfim, os amigos.
Está ali naquela enfermaria, numa cama de ferro com lençóis a que falta alvura e uma colcha esfiapada. Uma enfermaria em que a claridade penetra a custo na superfície pouco branca das paredes e do tecto.

Quando terminou o serviço militar, foi para a Guarda Republicana. Mas não gostou daquela vida e voltou para a santa terrinha, para o campo, para a enxada, para o amanho da terra.
Ainda está vivo. Ainda resiste. Até ainda se levanta. Ou melhor, desdobra-se, desenrosca-se, multiplica-se. Por pouco não bate com a cabeça no tecto. Quase o mesmo arcaboiço de quando era um homem novo e são. Nem parece estar doente. A mesma boca e os mesmos dentes. Todos, e sãos. Nem parece ter setenta anos. Há cinco que estaria a viver da reforma, por inteiro, se se tivesse deixado ficar na Guarda Republicana.

-Estou deserto que isto acabe – diz.
Mas a sua voz não tem a ribombância do trovão, seu habitual timbre.
-A minha filha, coitada, com aquela doença, que a não deixa fazer nada; viu-se obrigada a tratar de me meter no Asilo. Mas só por isso, sei-o eu. Tivesse ela saúde, e eu não havia de acabar os meus dias num asilo.
Referia-se à segunda filha, a Rosalina, casada com o Mátempo, da Azinhaga, que toda a gente diz ser muito bom para ela, um santo. Um casal ainda tão jovem, e caíra-lhes aquela desgraça em cima.
-E o teu filho – lembra-lhe o visitante.
-O meu filho?... Ah... o meu filho... Não quer saber de mim. E o que eu fiz por ele!... É triste, esta vida.
-Mas há sempre os amigos... – riposta o visitante, procurando levar algum ânimo ao doente.
-Ah... Os amigos? Estive aqui dois meses antes de ir para o Asilo. Quando vim para o Asilo estive aqui outra vez.
Arrasta as palavras até se tornarem imperceptíveis. Cala-se, até ganhar novas forças.
-Estive mês e meio no Asilo, e agora já estou outra vez aqui na enfermaria há mais de quinze dias. Amigos!... Só quando podia andar a consolar os desgostos da sua vida com os meus desgostos. Só quando para me manifestarem a sua piedade não era preciso irem muito longe. Só quando os podia acompanhar à taverna ou mesmo na minha miséria ainda tinha alguma coisa para repartir com eles. Agora?... Amigos!... É triste, esta vida... É infame, esta pobreza... É selvagem, isto tudo... Amigos... Hospitais... Asilos...
Já nada o prende. É mesmo caso para dizer: quem o viu e quem o vê!
Já não resiste, propriamente. Subsiste.
Já não vive. Sobrevive.
Sobrevive com pastilhas, comprimidos e drageias.
Pastilhas para o coração. Drageias para urinar. Comprimidos para outra coisa qualquer. De tempos a tempos também uma injecção, graças, tudo, aos cuidados de um médico que visita os doentes de três em três dias. Isso e, naturalmente, a alimentação. Primeiro prato: arroz, sempre arroz, com caldo a saber a carne. Segundo prato: ora arroz, ora massa, muito raramente batatas, umas vezes com um pedaço de carne de carneiro, outras com uns fios de carne da mesma rês.

Está ali naquela enfermaria. Chama-se Augusto Anastácio... Um nome que não terá o privilégio de se eternizar. É um irmão, sem dúvida, mas não eterno, como aqueles cujos nomes figuram numa lápide à entrada do Hospital, este com um nome eterno mais que todos, porque de Cristo chamado.
E não terá (ele, o Augusto Anastácio) o nome na lápide do Hospital, porque não o ajudou a construir, nem a manter.
Rachou lenha; semeou, sachou, colheu e malhou ou meteu na alimentadora da debulhadora o feijão, o milho, o trigo; tratou das oliveiras e carregou com seiras cheias do bagaço a que foi extraído o azeite, nos lagares; cavou e pulverizou nas vinhas e fez o vinho nas adegas; pastou gado e esquartejou reses. Dos seus braços saiu tudo, enfim, quanto encheu os sacos dos irmãos eternos que desfilaram pelos cortejos de oferendas para o Hospital de Cristo. O mesmo que outros fazem agora para que não lhe falte ali o caldo de arroz com sabor a carneiro todos os dias ao almoça e ao jantar, nem o prato ora de arroz ora de massa, raramente de batatas, com uma amostra da mesma rês, alternadamente num naco ou desfiada, o que lhes dará o mérito de, mais tarde ou mais cedo, terem o seu nome inscrito na lápide afixada à entrada do Hospital.
Vêem-no ali?
Podia estar a receber uma reforma e ter, a troco dela, quem cuidasse dele nos dias que lhe restam de vida. Podia, porque foi soldado da Guarda Nacional Republicana. Podia, se não lhe faltasse o feitio para aquilo. Intrometer-se com este, intrometer-se com aquele, multar os pobres que andavam a fossar pela vida só porque uma farda lhe dava o direito a isso e um cavalo e uma espada o punham ao abrigo de desagravos, constituía para si um martírio constante.
Era assim... que fazer?!...
Sempre que tinha, por dever de ofício, de intervir com alguém, sentia-se mal.
Ele, que por uma justa causa era homem para os maiores cometimentos sem outra arma para a luta que não fossem os seus dotes naturais: um metro e noventa de altura, tronco largo, mãos sapudas e pés com lastro para se firmarem bem na terra. Dimensões de gigante que lhe emprestavam aos movimentos a aparência de retardados, com um simiesco baloiçar de braços e passadas de pato marreco.
   
Até certa altura foi um homem quase feliz, como quase todos os outros homens até que lhes não aconteça nada de especial na vida.
Cresceu atrás dos porcos e das ovelhas, passou aos trabalhos dos homens com 13 anos, vestiu o seu primeiro fato completo (calça, colete e jaqueta), de serrubeque, no dia em que foi à inspecção para o serviço militar. Foi à tropa, casou, vieram os filhos, etc., etc..
E passou pela Guarda Republicana. Mas não gostou. Porque queria ser senhor de si, não ter satisfações a dar a ninguém durante algumas horas por dia, e nos dias inteiros em que não tivesse trabalho ou fosse Domingo ou feriado. Porque queria ir para onde muito bem lhe apetecesse, quando muito bem lhe aprouvesse.
Por isso não quis nunca, também, ajustar-se ao ano. Nem hortelão, nem guarda de coisa nenhuma, nem maioral de nada. Nem capataz, nem abegão, por muitas honras, e às vezes proveito, que tais cargos costumavam trazer.
Está ali, naquela cama de hospital. Um herói sem estátua, sem o nome em qualquer lápide; um herói que, como tantos outros seus iguais, nunca constará de qualquer efeméride.


Nota - Infelizmente, algumas vezes me esqueci de datar o que ia escrevendo. E foi o que aconteceu neste caso. E agora, ao “resgatar” dos meus arquivos, tantos anos passados, este apontamento suscitado por uma visita que fiz, com o meu pai, ao Augusto Anastácio, estava ele então internado no Hospital de Santarém, já não posso sequer precisar se isso ocorreu em 1964 ou em 1977, as duas primeiras vezes (com um intervalo, por conseguinte, de 13 anos) em que estive em Portugal, depois de ter vindo para Moçambique. Considerando, porém, vários aspectos, como, por exemplo, a idade com que, mais ou menos, faleceram a Carolina e o João Anastácio e a idade que eu então tinha, sou levado a supor que o Augusto Anastácio seria um bocado mais velho que o meu pai. Daí, e também dada a referência à sua idade nesta minha narrativa como sendo então de 70 anos, ser também levado a pensar que a mencionada visita teria ocorrido em 1964. Terá sido?...


Maputo, 25 de Maio de 2008