sábado, 16 de maio de 2009

Intervir!


Tinha eu dezassete ou dezoito anos quando escrevi a primeira carta para um jornal. Fi-lo a convite de um velho pedreiro chamado Francisco Carvalho, que todos tratavam directamente por Mestre Carvalho e, indirectamente, por Carvalho Velho, para o distinguir do filho, António Carvalho, também pedreiro, que seria por, conseguinte, o Carvalho Novo.

Trabalhava eu então num forno de telha e de tijolo que só funcionava no verão, por falta de instalações apropriadas para funcionar no tempo chuvoso. Poderia designar-se por “fábrica de cerâmica”, mas era rudimentar de mais para isso. Tanto aquele como todos os outros que havia nas redondezas eram denominados muito simplesmente por fornos: Forno do Alviela, esse para onde eu fui sempre trabalhar dos catorze aos dezanove anos e mais ou menos de Abril ou Maio a Agosto ou Setembro, conforme o tempo o permitisse; Forno de Mato Miranda, etc.
Ora, quem a primeira vez me contratou para ir trabalhar para o forno foi precisamente o Mestre Carvalho, que era quem então o explorava, por aluguer pago em tijolos e telhas aos seus proprietários, os latifundiários Infantes da Câmara, de Vale de Figueira.

O Mestre Carvalho assinava "Os Ridículos" , um semanário humorístico editado em Lisboa que teve sempre a vida complicada pela censura salazarista, a qual acabou mesmo por pôr-lhe fim, não sei já se por medida censória definitiva ou se pelas dificuldades económicas criadas pelos sucessivos períodos de suspensão, sempre crescentes, que foram sendo aplicados ao jornal. Uma das secções de Os Ridículos era “Terra de Ninguém”, em que os correspondentes ou assinantes, em geral assinando com o seu gentílico, davam conta do que de pior ia pelas respectivas terras.

Pois bem, um dia o Mestre Carvalho teve a ideia de me propor que escrevesse um artigo para aquela seccção, sobre o Pombalinho. Eu não me fiz de rogado. E assim alinhavei as minhas primeiras palavras que saíram num jornal, escalpelizando o facto de o Pombalinho, aldeia com cerca de mil habitantes, não ter médico, não ter farmácia, não ter telefone nem electricidade, mas ter catorze tavernas. Uma verdadeira “Terra de Ninguém”, de facto. Assinava com o inevitável gentílico: Um Pombalinhense.

Por essa altura, pouco mais ou menos, tive conhecimento da existência da Gazeta do Sul, um semanário de que gostei e de que, por isso, me tornei assinante. Denominava-se de “semanário de cultura popular”, era editado no Montijo e dispunha de um espaço para colaboração dos assinantes. Também não estava muito nas graças do Estado Novo. Era, sem dúvida, um bom jornal, atingindo em pleno os objectivos que se propunha: a cultura popular. Semana a semana, eu lia-o com avidez.
Foi então que começou a morder-me o bichinho de ver o meu nome no jornal, já que aí não iria usar o gentílico, como autor de alguma coisa escrita por mim. Camponês assalariado num meio muito limitado, com a matéria do 2º Grau da Instrução Primária (4ª classe), que completara aos onze anos, já bastante esquecida, era-me difícil a escolha dum tema e a sua exposição, mas não me dei por vencido. Acabei por mandar dois artigos para o jornal, muito espaçados um do outro, que foram publicados.

Com a ida para a tropa (Serviço Militar Obrigatório) interrompi a assinatura da Gazeta do Sul. Reateia-a depois e mantive-a até estar em Moçambique há já cinco ou seis anos, ou seja, até á altura em que a Gazeta, com as lutas de libertação nacional desencadeadas nas então colónias de Portugal em África e com a proclamação de Salazar, para Angola e em força, assume abertamente uma posição colonialista, abjurando assim da sua anterior postura de oposição ao Estado Novo, coisa para mim inaceitável.

Não guardei esses meus primeiros escritos para jornais. Não tinha ainda o espírito de coleccionador, por um lado, e de arquivista, a minha autêntica vocação, creio eu, por outro, que mais tarde me cativaram. Por isso perdi também O Mosquito, precursor dos jornais de banda desenhada em Portugal e minha primeira assinatura de hebdomadários, tinha então catorze ou quinze anos. Hoje, O Mosquito, que deu lugar ao Mundo de Aventuras (ou foi ao Cavaleiro Andante?) e que eu assinei até á sua extinção, é uma relíquia para coleccionadores de publicações de BD. Nele travei conhecimento com o mágico Mandraque, o Capitão Cid e outros mais de que já não me lembro.


Disse acima que terá sido o bichinho a morder-me por ver o meu nome no jornal que me teria lançado na aventura de escrever para jornais. Será por aí certamente, que todos começam. Mas não será que subjacente a esse desejo existirá já também a vontade de intervir quanto mais não seja no evoluir dos acontecimentos à sua volta? Penso que sim. Sendo que esse objectivo será, naturalmente, mais ou menos atingido consoante a capacidade e a pertinácia do escrevente, assim como a guarida que os orgãos de informação lhe dêem ou deixem de dar.