quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Barbearias e Alfaiatarias


Nos dias mais pequenos do ano (Outono e Inverno) e aos sábados em geral, os adolescentes que ainda não namoravam (esses iam para o namoro) passavam muitas vezes o serão pelas barbearias e pelas alfaiatarias, especialmente por aquelas em que o barbeiro e o alfaiate fossem jovens também. Embora uma aldeia, certamente não das maiores, o Pombalinho chegou a ter, naqueles tempos (décadas de 30,40, 50), nada mais nada menos que 5 barbearias e 3 alfaiatarias.

As barbearias eram as do António Teixeira (conhecido por António Barbeiro), do João Anacleto (João Barbeiro), do Diamantino Costa, do Carlos Cavaco (Cavaquito) e do Veríssimo Duarte.
Todas instaladas em cubículos, três na Rua de Cima (Rua Barão de Almeirim), e duas na Rua de Santo António, algumas delas ficavam bem próximas umas das outras.
Na Rua de Cima situavam-se a do António Teixeira, entre o prédio dos Barões de Almeirim e a mercearia da senhora Anita, com uma entrada para as traseiras entre o prédio e a barbearia; a do Diamantino Costa, que depois de aprendido o ofício em Santarém se estabeleceu no Pombalinho num apartamento (o primeiro à esquerda, no rés-do-chão) do edifício pegado à Casa do Povo, pertencente a Joaquim Gonçalves Ferreira, mas que depois de casado se mudou para um compartimento anexo à loja do sogro (o Manuel Tadéia); e a do Carlos Cavaco, que, depois de aprendida a profissão com o António Teixeira, se estabeleceu num cubículo logo a seguir ao portão de entrada para as traseiras do prédio do Américo Cachado e também sua propriedade.

Neste mesmo espaço entre a Igreja e a Casa do Povo houve também a barbearia do Francisco Braga, mas esta encerrou, julgo eu, antes de um dos outros, o Cavaquito ou o Diamantino Costa, se ter estabelecido. O Xico Braga fechou a barbearia para ir cumprir o serviço militar, em Lisboa, e por lá ficou depois, salvo erro como funcionário do Estado num serviço de fiscalização criado para combater a especulação resultante da escassez provocada pela Segunda Grande Guerra (escassez essa que levou ao abastecimento de alguns produtos essenciais, como o pão e o açúcar, por meio de senhas) e de que na altura era director o major Silva Pais. Pelas conversas do João Braga, o filho fora colocado como impedido do Silva Pais durante o cumprimento do serviço militar, o que teria vindo a valer-lhe a protecção do mesmo.

E, se muito me não estou a confundir, conheci ainda outra barbearia nesse mesmo espaço, pertencente ao Júlio Freire pai (Júlio da Silva Freire), que aí exercia a profissão. Se realmente não estou enganado, situava-se a mesma num compartimento que ficava à esquerda da habitação da família, ou seja, pegado ao edifício em que o António Mota Alegre habitava (no primeiro andar) e tinha o seu estabelecimento comercial e tratava do correio (no rés-do- chão).  Bem poderá dizer-se que no caso desta última barbearia, tudo não passa de uma suposição minha, mas, já agora, suposição por suposição, deixe-se-me ainda supor que o Júlio Freire filho (Júlio da Conceição Freire) aí terá chegado também a tratar do cabelo e da barba dos clientes, coisa que terá, naturalmente, aprendido a fazer com o pai.

O que não é suposição nenhuma é que um neto do primeiro Júlio Freire e sobrinho do segundo, o Júlio da Conceição Silva, foi realmente barbeiro, mas não exerceu a profissão no Pombalinho. Aprendeu a profissão em Almeirim, depois de ter saído de casa, e trabalhou depois numa barbearia de  Lisboa, antes de se ter empregado num serviço estatal, em Setúbal.

As duas barbearias da Rua de Santo António ficavam a menos de cinquenta metros uma da outra. Eram a do João Anacleto, situada mesmo em frente da Rua de Baixo (Rua 31 de Dezembro), e a do Veríssimo Duarte, pegada à mercearia do José Narciso (e mais tarde do Felesmino e da Júlia), no sentido de quem vai para a Rua Nova (Rua 5 de Outubro).

O João Anacleto, devido a uma doença que o deixou de cadeira de rodas deixou de exercer a profissão, mas não fechou a barbearia. Pôs por sua conta um jovem barbeiro de Riachos, o Carlos Patim (não sei se apelido, se alcunha, o “Patim”) e ele tomou conta, com o apoio da mulher (a Augusta Mota), do Posto dos Correios, instalado (depois desse serviço ter deixado de estar a cargo do Mota Alegre) ao lado da loja das Motas, como era conhecida.

O Veríssimo Duarte era ajudado, nos dias e horas de maior afluência de clientes (o sábado à noite e o Domingo), pelo irmão, o Francisco Duarte, mais conhecido por todos por Xico Pardal, que também havia aprendido o ofício, mas que acabou por assumir como sua profissão a de negociante de criação e de coelhos, de peles e de ovos, que comprava no Pombalinho e arredores e despachava para Lisboa,  por via férrea.

Falando do Xico Pardal, justo é realçar a sua grande classe como actor de índole humorística, largamente comprovada na sua larga participação em grupos teatrais do Pombalinho e da Azinhaga.
Quanto a alfaiates, eu ainda sou dum tempo em que não havia nenhum estabelecido no Pombalinho. Vinha um alfaiate de São Vicente do Paul, o Joaquim Alfaiate (nunca o conheci por outro nome) arranjar clientes ao Pombalinho e, pelos vistos, dava bem conta do recado. E havia para isso duas boa razões. Eram elas, por um lado, que os alfaiates, por aqueles tempos e naqueles meios, só faziam fatos para homens e, por outro, que a maior parte dos homens não mandava fazer mais que dois fatos durante a sua vida, o primeiro para estrear no dia da inspecção para o serviço militar (onde teria que despi-lo, assim como ao resto da roupa), e o segundo para estrear no dia do casamento.

Um fato completo era, e é, composto por três peças, calças, casaco e colete, mas o colete usava-se muito pouco, pelo que a maior parte o não mandava fazer. Sempre ficava mais barato. E, por falar em custos, não será despiciendo lembrar que, desses dois fatos apenas que a maior parte mandava fazer ao longo da vida, um deles, o da inspecção militar, para um ou outro com maiores dificuldades tinha de ficar-se por um fatinho de cotim.

A certa altura, porém, o Joaquim Alfaiate veio estabelecer-se no Pombalinho, onde, além de quatro aprendizes, incluindo um filho, o José, teve a trabalhar consigo um alfaiate que durante algum tempo esteve a habitar no Pombalinho, em casa do João Feliciano, de cuja esposa, salvo erro, era familiar. Era aleijado de uma mão, mas não ao ponto de que isso o impedisse de jogar futebol. Também o não impedia, de resto, de exercer a sua profissão.

Passados uns anos, e depois de ali ter falecido uma sua cunhada solteira (irmã da mulher) que habitava com a família e também trabalhava na alfaiataria, o Joaquim Alfaiate partiu novamente, não se livrando da fama de ter sido ele o causador da morte da cunhada, por meio de alguma remessa, nome que por aquelas paragens se dava a qualquer mistela dada a alguém com o fim de lhe acabar com os dias. Cá por mim, nunca acreditei que o homem tivesse feito isso.

Mas, então, já os seus aprendizes se haviam tornado mestres e se haviam estabelecido por conta própria. Casos do Manuel Braga, que ocupou o espaço que fora a barbearia do irmão, conforme já referido. E casos também dum João e de um Ângelo, que já vieram com o mestre de São Vicente do Paul e dos quais não sei se alguma vez conheci o apelido. Ambos acabaram por ficar no Pombalinho, onde se estabeleceram e se casaram. O João, como Joões há muitos, passou a ser conhecido por João Alfaiate, seguindo o ancestral costume de se dar a esses profissionais a profissão por apelido. O Ângelo, como não havia mais nenhum Ângelo no Pombalinho, não havia necessidade de chamar-lhe Ângelo Alfaiate (e parece que até não soa bem), para se saber de quem se falava. Estava identificado apenas pelo nome próprio. O que não quer dizer, naturalmente, que algumas vezes assim não tenha sido chamado.

O Joaquim Alfaiate, ao estabelecer-se no Pombalinho ocupou o compartimento do edifício do Joaquim Gonçalves Ferreira em que mais tarde o Diamantino Costa viria a instalar a sua barbearia, como já mencionado. O Joaquim Alfaiate mudara-se para uma casa que ficava na Rua de Santo António, em frente da Rua Joaquim Gonçalves Ferreira ou quase, ali tendo exercido a profissão e permanecido, julgo eu, até deixar o Pombalinho.

O João Alfaiate estabeleceu-se na casa pegada, pela parte de cima, à fonte da Rua de Baixo, muito próximo, portanto, do estabelecimento do Manuel Cavaco e da Domicília. O Ângelo estabeleceu-se no Outeiro, onde me parece que os seus pais habitavam. E, com a minha saída da aldeia natal, pouco mais sei quanto às andanças de um e do outro. Sei é que na barbearia do Carlos Cavaco e na alfaiataria do João Alfaiate, muito próximo da qual morava, passei muitos serões em bom convívio com os próprios e com malta da nossa geração. E também passei bons bocados na barbearia do António Teixeira, pois foi a que eu mais frequentei (era, aliás, seu cliente) antes da abertura dos estabelecimentos do Carlos Cavaco e do João Alfaiate.

Um facto a realçar, em relação às barbearias, era o seu contributo para uma actividade lúdica dos clientes. Com efeito, todas elas dispunham de jogo de damas e de jornais aos sábados e aos Domingos (“O Século” ou o “Diário de Notícias”), pois, como já aludi a propósito da ajuda do Xico Pardal ao irmão nos dias e horas de maior afluência de clientes, as barbearias estavam também abertas nesses dias, sendo o serão de sábado o maior de toda a semana. Se os barbeiros tinham um dia de folga, era à segunda-feira.
Também não faltavam então – mais exactamente entre 1939 e 1945 – por cima dos bancos das barbearias, as publicações sobre a Segunda Grande Guerra, que as Embaixadas dos Aliados faziam chegar a toda a parte.

Assim, foi na barbearia do António Teixeira que eu aprendi a jogar às damas, que foi um dos meus grandes entretenimentos durante muitos e muitos anos, e a fazer palavras cruzadas, que muito contribuíram (e já não contribuem porque não tenho hoje jornais que as publiquem) para o enriquecimento do meu vocabulário.
Naquele tempo, raríssimo era o camponês adulto que soubesse ler, e, por isso, algumas vezes li, em voz alta, também na barbearia do António Teixeira, para todos os presentes, as notícias do jornal que mais interesse despertavam.

Só para mim, não deixava de ler nunca eram ao apontamentos críticos publicados nesses jornais sobre os filmes estreados (em Lisboa, claro). Não tinha a mínima hipótese de ver esses filmes, ou quaisquer outros, mas não desperdiçava um só desses apontamentos, muito longe, naturalmente, de pensar que o cinema viria a ser uma actividade a que eu estaria bastante ligado, primeiro como cineclubista, depois como chefe do Sector de Documentação e Informação Cinematográfica do Instituto Nacional de Cinema, em Maputo, e como colaborador, durante pelo menos duas décadas, de todos os órgãos de comunicação social então existentes na mesma cidade, além de ter feito parte, por muito tempo, da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos (CECE), espectáculos esses que, diga-se, se resumiam aos filmes.

E, já agora, por falar em filmes, e por o facto, ocorrido nesses tempos da minha infância, não estar certamente despido de interesse, histórico até, seja-me permitido lembrar, a terminar este capítulo, que o primeiro filme que eu vi - e, como eu, com certeza a quase totalidade da população do Pombalinho – foi “Nada de Novo no Alcazar”, um documentário de propaganda franquista que durante a Guerra de Espanha (1936/1939) andou a dar a volta a Portugal, por iniciativa do Secretariado Nacional de Informação (SNI), e que foi exibido no adro da igreja.

Bons tempos?... Para quem os recorda... Ou não será que RECORDAR É VIVER?