INSPECÇÃO
PARA O SERVIÇO MILITAR
À inspecção militar
iam, em cada ano, os indivíduos do sexo masculino que nesse ano completavam
vinte anos de idade. Em 1949, nascidos, por conseguinte, em 1929, éramos 19, o
maior número até então registado no Pombalinho. Por ordem alfabética, aqui vão
os nossos nomes:
Alberto Gomes, António
Andrade Leal, António Costa, António Domingos, António Maria Duarte, Cipriano,
Ezequiel Andrade Barreiros Mateiro, Francisco Bispo, Guilherme Afonso dos
Santos, João Fataça, Joaquim Duarte, José Marcano, José Narciso, Manuel Cachado,
Manuel Cardoso, Manuel Carvalho, Victor.
Falta o nome de um,
porque, tendo nascido no Pombalinho, de lá saiu, com os pais, muito novo ainda.
Juntou-se a nós no dia da inspecção, parece que vindo de São Vicente do Paul ou
do Sobral, mas não fixei o seu nome. Não se juntaram a nós, no dia da
inspecção, o Manuel Cachado e o Manuel Cardoso. O primeiro porque tinha ido
para Lisboa aos 16 ou 17 anos e providenciou para ir à inspecção em Lisboa. O
segundo porque tinha ido para Angola, com os pais, dois ou três anos antes, e
por lá terá ido também à inspecção.
Alguns já faleceram.
Que eu saiba, o António Maria, o Ezequiel Mateiro, o Joaquim Duarte, o José
Narciso, o Manuel Cardoso, o Manuel Carvalho, o Sofio Félix e o Victor, que,
embora quase se não notasse, era deficiente físico. Alguns dos nomes estão
completos: os do António Leal, do António Maria, do Ezequiel Mateiro, como eram
tratados entre a malta, e o meu. Eu era tratado por Guilherme Afonso. Outros
nomes não sei se estão completos, mas sei (ou estou convencido disso) que são
nomes e apelidos reais: Alberto Gomes, António Domingos, Francisco Bispo, João
Fataça, Joaquim Duarte, José Marcano, José Narciso, Manuel Cachado, Manuel
Cardoso, Manuel Carvalho e Sofio Félix. Do Cipriano e do Victor só me lembro
dos nomes próprios, o que se deve, julgo eu, ao facto de não haver naquele
tempo outro Cipriano nem outro Victor no Pombalinho e ficarem, por isso,
perfeitamente identificados sempre que alguém se lhes referisse apenas pelo
nome próprio. O Cipriano era filho de um pedreiro que foi para Santarém com a
família pouco depois do Cipriano, que veio a aprender o ofício do pai, ter
completado a instrução primária (4ª classe). Suponho que o apelido dessa
família era António. Pelo que o Cipriano seria, assim, Cipriano António. O
Victor era filho de um sapateiro, que, salvo erro, fazia parte duma família de
apelido Caetano. E a ser, de facto, assim, o Victor seria Victor Caetano.
O DIA DA INSPECÇÃO
O dia da inspecção era
tradicionalmente um dia de festa para os que iam à inspecção. Antes,
compravam-se foguetes e morteiros para deitar nesse dia.Naquele ano, fomos
comprá-los eu e o Francisco Bispo, porque éramos os dois que tínhamos
bicicleta. Andámos entre uns quinze a vinte quilómetros, para os lados do
Entroncamento, mas onde fomos, exactamente, não me recordo. Talvez à Atalaia.
Na véspera da inspecção, a malta - que casa de banho não tinha e
poucas vezes tomava banho, como toda a gente, então - ia tomar banho numa das
alvercas ou lagoas mais próximas, como sempre em pêlo e normalmente em grupo, o
que pode ser ilustrado com a fotografia que se segue e cujos banhistas são, da
esquerda para a direita: Joaquim Duarte, António Maria, António Leal, Manuel
Barão, José Leal, Ezequiel Mateiro, Manuel Bernardino e Francisco Rodrigues.
Como se vê, consultada
a lista patente no início deste texto, quatro dos banhistas fazem parte dela.
Eu também lá estava, mas a tirar a fotografia. A máquina não tinha dispositivo
que permitisse engatilhá-la e ir colocar-me no grupo para ficar também na
fotografia. Era simples de mais para isso. Desses quatro e de mais quatro dos
que fomos à inspecção nesse ano, podem ver-se fotografias individuais mais
abaixo.
Falando ainda do banho da véspera, seis anos antes (1943) esse
banho fora fatal para o António Fonseca, mais conhecido por António do Romeu
(nascera em 1923 e era filho de Romeu Fonseca, que teve um estabelecimento na
Rua de Santo António). Não sabia nadar, caiu num pego e afogou-se. Por sinal,
assisti, e assistiu muita gente, algumas horas depois, à retirada do seu corpo
da água, por uns poucos - entre eles o Joaquim Justino, excelente mergulhador -
que, abnegadamente, tinham andado à procura do corpo. Nesse ano, escusado seria
dizê-lo, o dia da inspecção não foi um dia de festa.
Como transporte para a inspecção alugava-se uma ou duas carroças,
consoante o número de mancebos a apresentar-se no Distrito de Recrutamento e
Mobilização, em Santarém (sede do Concelho). A partida fazia-se bem cedo,
debaixo do estralejar dos foguetes, e o regresso ao fim do dia, com os foguetes
poupados para que o maior estardalhaço acontecesse já ao chegar ao Pombalinho,
anunciando aos quatro ventos que a malta vinha aí.
Cada um levava o seu farnel, porque comer em restaurantes estava
fora do alcance da maior parte, senão da totalidade. Comia-se onde melhor
calhasse, entre a inspecção e a ida às putas. A ida às putas, pois... A
prostituição em Portugal era então regulada oficialmente. As prostitutas
matriculavam-se numa qualquer repartição camarária e ficavam obrigadas a exames
sanitários periódicos, sendo-lhes permitido habitar conjuntamente casas em que
exerciam a sua actividade, aí esperando pelos clientes. Alguns anos depois o
governo de Salazar decidiu tornar a prostituição ilegal, como se com isso
pudesse bani-la. Efectivamente, esse era o dia em que a maior parte dos rapazes
das aldeias perdia os três, ou
seja, a virgindade. Ou porque antes disso nem sequer tenham ido onde houvesse
casas de prostitutas (e fazê-lo de outra maneira antes do casamento, naquele
tempo e naqueles meios, era ousadia causadora de graves dissabores) ou porque,
tendo-o feito, não haviam usufruído de condições favoráveis. O dia da inspecção
era, pois, o grande dia, com todos os receios que, apesar de tudo, implicava a
primeira vez. Nunca se sabia como iria ocorrer o desempenho. E até
acontecia haver um ou outro que se baldava. Porque o seu temor ou timidez
fossem maiores, ou porque as suas inclinações sexuais não fossem exactamente
para o outro sexo. Casos em que o dia da inspecção não seria exactamente um dia
de festa, bem se compreende porquê, assim como o não seria para os que tinham
horror à vida militar e deitavam por contas que aquele iria ser o dia da
leitura da sua sentença.
Um tio meu, por exemplo, irmão do meu pai e de seu nome verdadeiro
João dos Santos, mas conhecido por João Afonso, por não querer ir à tropa
desapareceu do Pombalinho antes da data da sua ida à inspecção. E só se soube
dele passados alguns anos, quando um grupo de gadanheiros do Pombalinho o
encontrou nos campos de Vila Franca de Xira. Assumira o nome de António
Canário, e António Canário ficou para o resto da vida, que terminou numa
barraca que ardeu com ele lá dentro, segundo se supôs por ter adormecido com o
cigarro aceso, nos mesmos campos em que fora encontrado pelos gadanheiros. E o
filho que teve, Canário ficou, o afamado campino José Canário. E os filhos
deste, Canários são.
Voltando ao dia da inspecção para o serviço militar e à perda da
virgindade, disse eu que esse era o dia em que tal acontecia à maior parte. E
assim era, de facto. Mas aqueles a quem tal não acontecia nesse dia, nem todos
era por se esquivarem, como acima ficou dito. A um ou outro isso também não
acontecia dessa vez, simplesmente por já ter acontecido antes. De mim próprio
posso falar. E também do António Leal. Efectivamente, isso não nos aconteceu, a
mim e ao António Leal, no dia dessa inspecção de 1949. Mas foi também por
altura duma inspecção, dois anos antes. Eu, ele e mais dois pombalinhenses – o
Manuel Barão (Manuel António Correia Bento, de seu verdadeiro nome) e o Júlio
Freire (Júlio da Conceição Silva), nascidos em 1930 – concorrêramos para a
Marinha, como voluntários, aos dezoito anos.
A inspecção para a Marinha era feita em Lisboa, no Hospital da
Marinha. E foi então que eu e o António Leal visitámos uma casa de prostitutas,
no Bairro Alto. Quanto a essa inspecção para a Marinha, seja dito, já agora,
que chumbámos os quatro, o que, pela parte que me tocou, deu origem a uma
grande frustração, porque queria muito ir para a Marinha, como o meu irmão, e
tinha assumido isso praticamente como certo. A mim, o médico que me observou,
em pelote e a andar para lá e para cá, conforme as suas indicações, teve o
desplante de me dizer, no fim, que eu tinha uma perna mais comprida que a
outra, coisa que nem eu nem ninguém alguma vez tinha notado. Mas esse será
assunto para outra altura. E sê-lo-á também o padrão então reinante nas
relações entre namorados, o que levava a que a primeira vez, por parte dos rapazes, fosse, em
geral, com uma prostituta. E depois mais umas tantas vezes, sempre que a
oportunidade surgisse e houvesse dinheiro para isso (para aí uns 10$00),
inclusivamente durante o cumprimento do serviço militar, para os que o cumpriam
(terra onde houvesse um quartel não lhe faltava, com certeza, uma casa de
prostitutas), e até ao casamento, o que não deixaria de ter, certamente,
reflexos negativos na futura vida afectiva dos casais.
O dia da inspecção, que terminava com um baile abrilhantado por um
acordeonista pago pelos inspeccionados, era também o dia em que alguns vestiam
um fato e calçavam um par de sapatos pela primeira vez. Melhores ou piores,
segundo as posses dos respectivos pais, já se vê.
Dos que fomos à
inspecção em 1949, consegui fotos destes 8. Note-se que os primeiros 6 estão
equipados. Com efeito, estas suas fotos foram recortadas de uma fotografia
conjunta tirada antes de um jogo de futebol Azinhaga-Pombalinho. Acrescente-se
que os 6 estavam entre os titulares da equipa da nossa terra. E não havia
substituições, nesse tempo...
19/02/2006
Guilherme Afonso
Guilherme Afonso
P.S.
Tenho este artigo escrito já há bastantes anos. E como em geral faço a tudo o
mais que tenho escrito e se mantém inédito, calha às vezes voltar a pegar-lhe.
E quando isso acontece, não raro é dar ainda um retoque aqui ou ali, procurando
melhorar a forma. Mais vírgula num lado, menos vírgula noutro; vocábulo trocado
por outro que então considero melhor significar o que quero dizer, algum
arranjo no sentido de tornar o texto mais claro, e coisas assim. E foi o que
aconteceu mais uma vez, ao pegar agora nesta parte das minhas memórias
intitulada “Inspecção para o Serviço Militar”, cuja última mexida, pela data
que contém, foi em 19 de Fevereiro de 2006.
Porém, desta vez alguma
coisa mais me é propiciado fazer, não só em termos da forma, mas também do
conteúdo. E, isso, graças a uma base de dados referente às matrículas na escola
primária do Pombalinho naqueles recuados tempos, introduzida na Internet pelo
Manuel Gomes, base de dados essa em que pude verificar os nomes completos dos
meus companheiros de inspecção que frequentaram a escola, assim como ver quais
os que a frequentaram e quais os que o não fizeram.
Em relação a esse
aspecto (o do conteúdo), considerei preferível, no entanto, não mexer no texto
e acrescentar-lhe este P.S. com os novos elementos que a referida base de dados
me permitiu conhecer.
Assim, posso agora
completar os nomes do António Domingos, do Cipriano, do Manuel Cachado, do
Manuel Cardoso e do Manuel Carvalho, que são, respectivamente, António Domingos
Correia, Cipriano António Oliveira, Manuel Nunes Cachado, Manuel Sequeira
Cardoso e Manuel Carvalho Cruz. Por outro lado, o companheiro de tantos anos
que eu mencionei como sendo António Maria Duarte, por estar convencidíssimo que
o seu nome completo era esse, está nessa base de dados como António Maria, apenas.
Interessante, parece-me, será ainda conhecer quais dos18 companheiros
constantes da relação inicial não frequentaram a escola, o que significa que
com a idade de irem para a escola andavam era já a guardar gado, como ajudantes
dos maiorais, ou a fazer qualquer outro trabalho para ajudarem os pais. E são
eles: o António Costa, o João Fataça, o José Marcano e o José Narciso. Mas com
a consulta à base de dados, um caso se me apresenta muito impreciso. É o que
diz respeito ao Victor, nome que, aliás, aparece grafado Vitor. E essa
imprecisão começa por eu estar convencido que o Victor fazia parte do grupo dos
que foram à inspecção para o serviço militar em 1949, o que significa que teria
nascido em 1929, quando a data do seu nascimento que consta na base de dados
escolar é a de 24 de Janeiro de 1928. Engano meu quanto à sua ida à inspecção
naquele ano? Ou lapso na folha de matrícula quanto à sua data de nascimento? E
isto, deitando por contas que se trata do mesmo Victor, o que se me afigura
como muito provável, visto não ter nunca conhecido outro Victor no Pombalinho e
ter a certeza que andámos juntos na escola. Mas o seu nome completo - e é ele,
respeitando a grafia da folha de matrícula, Vitor Manuel Salazar Caitas - não
me deixa certeza nenhuma. E os nomes dos pais - José Anacleto e Conceição Calva
- também não. Ora, como digo acima, no artigo inicial, o pai do Victor
parecia-me fazer parte de uma família de apelido Caetano, quando afinal o seu
apelido era Anacleto. Isso, por si só, não significa contudo grande coisa.
Havia muitos casos em que as pessoas eram conhecidas por um sobrenome que não
era realmente o seu. Quanto ao seu nome próprio, tenho ainda na ideia que era
realmente José. Da mãe do Victor, lembro-me, de ouvir dizer, que tinha
abandonado o marido e o filho e se fora embora do Pombalinho. Eu não cheguei a
conhecê-la.
Quanto a falecimentos,
tive conhecimento de que depois da minha anterior mexida no texto (19/02/2006,
como acima mencionado), já faleceu também o Francisco Bispo.
E por aqui dou por
terminado, desta vez espero que definitivamente, este meu capítulo das minhas
“Memórias à Solta”.
26 de Julho de 2009
Guilherme Afonso
Guilherme Afonso