quinta-feira, 15 de julho de 2010

Incomunicável


A entidade responsável pela construção de estradas (a Junta Autónoma de Estradas, creio eu) havia decidido mandar asfaltar a estrada n.º 365 entre a Azinhaga e Alcanhões, numa distância que deveria andar, se as minhas contas não estão muito mal feitas, à volta de 8 quilómetros. As obras haviam sido atribuídas, por meio de concurso, a dois irmãos da Torre do Bispo de que não recordo osnomes.

 Não muito tempo antes, a mesma estrada havia sido macadamizada entre a igreja do Pombalinho e a Ponte Fernão Leite, tendo a obra decorrido sob a responsabilidade dos mesmos irmãos e tendo eu trabalhado na sua execução do princípio ao fim. Quer isto dizer que o mesmo troço de estrada passou por dois arranjos no espaço de um ou dois anos, primeiro pela macadamização, depois pela asfaltagem.

Obras do género incluíam a colocação, no local, da pedra constante do contrato, que era descarregada na berma da estrada em pedregulhos trazidos das pedreiras em camioneta e britada depois. Assim, os britadores - um grupo de sete ou oito homens, segundo os meus palpites feitos tantos anos passados sobre os acontecimentos, todos dos lados da Torre do Bispo, que era também a terra dos empreiteiros da obra - iam britando a pedra, carga a carga, enquanto eu e um companheiro dos mesmos lados a íamos medindo, utilizando para o efeito uma caixa apropriada com meio metro cúbico de capacidade.

Seja dito, de passagem, que se tratava de um trabalho bem puxado. As forquilhas, com grandes dentes de ferro, eram já bem pesadas, só por si.

Começávamos, os medidores, por colocar a medida no chão, junto a uma carga de pedra já britada. Tínhamos, claro, de escolher chão plano para a assentar, ou de aplaná-lo, caso não dispuséssemos de terreno plano. Depois, íamos metendo a forquilha na pedra, bem rente ao solo, e passando a pedra para dentro da medida, deixando-a cair o mais levemente que fôssemos capazes, porque com quanto mais força a pedra caísse em cima uma da outra mais se esboroavam as esquinas e mais pedra seria necessária para encher a medida. Com menos pedra, pouca que fosse, para encher a medida, ficávamos todos a ganhar, mas os medidores, com o tempo a mais que lhes levava o cuidado que deviam ter na operação, menos certamente que os britadores e os patrões. E com mais cuidado ainda tínhamos de o fazer quando aparecia a fiscalização – aconteceu duas ou três vezes – para verificar se a medição estava a ser bem feita.

Como em geral o espaço não chegava para a pedra ficar na berma da estrada em montes de 0,5 M³, muitas vezes tínhamos que aplanar o monte e assentar-lhe a medida em cima, para nova medição.
Chegando a acontecer eu e o meu companheiro da medição não termos pedra para medir, por não haver montes de brita prontos, britávamos nós também alguma de vez em quando. Qual o preço pago aos britadores por metro cúbico (todo o trabalho era feito de empreitada), não me lembro, mas por cada metro de pedra medida eram-nos pagos 2$00, ou seja, 1$00 para cada um. Todo o trabalho foi feito da Azinhaga para Alcanhões e teve o seu início em dias pequenos e chuvosos, no princípio do ano, tinha eu 18 anos, feitos em Novembro anterior, ou seja, em Novembro de 1947.

Andávamos então a medir a pedra britada mais ou menos a meio da estrada entre a Azinhaga e o Pombalinho quando o Chico Fataça começou, todos os dias de manhã, a passar por mim e pelo meu companheiro, da Azinhaga para o Pombalinho, onde andava a fazer blocos de cimento. O Chico Fataça tinha alguns anos mais que eu, pelo menos uns três ou quatro. A bem dizer, mal nos conhecía-mos. Mas ao encontrarmo-nos diariamente ali na estrada durante algum tempo começámos a conversar, falando-me ele então no Esperanto. Acho que já tinha ouvido alguma coisa ao meu pai sobre essa língua internacional e a sua aprendizagem por alguns azinhaguenses, entre eles exactamente o Xico Fataça, pensando eu que o conhecimento disso por parte do meu pai só podia vir do facto de ele e o Xico Fataça se terem encontrado antes e terem já falado sobre isso. Nesses nossos encontros na estrada, o Chico Fataça contou-me então o que se passava em relação ao Esperanto e à sua aprendizagem na Azinhaga.

O Esperanto fora criado em 1887 por Zamenhof (Lejzer Ludwik Zamenhof, oftalmologista judeu polaco – 1859/1917) com vista a tornar a comunicação entre indivíduos com línguas maternas diferentes mais fácil e havia atingido uma certa notoriedade, talvez dada a sua simplicidade, pois era constituída apenas por dezassete regras bastante simples, por um lado, e a vontade de aprender de muita gente que não tivera possibilidades de ir além do 2.º Grau da Instrução Primária, por outro.
Acontecia, porém, que em Portugal a sua aprendizagem não era livre. Estávamos no reinado de Salazar e ao Salazar e seus sequazes não podia agradar, naturalmente, o que quer que fosse que visasse facilitar as relações internacionais. Talvez deitando por contas, no entanto, que muito simplesmente proibir a aprendizagem do Esperanto se tornaria demasiado caricato aos olhos de quem quer que fosse, o salazarismo limitou-se a deitar mão de um processo que, a seu ver, por certo limitaria muito a sua aprendizagem: permitir que a aprendizagem se processasse somente por correspondência e individualmente. Fosse como fosse, o certo é que o Esperanto estava em expansão. Como chegara à Azinhaga, não sei, nem nunca soube. O que soube foi que o Xico Fataça fora o primeiro estudante do Esperanto na Azinhaga e que depois levou outros azinhaguenses a seguirem-lhe o exemplo. Assim como levou a mim e levaria qualquer um que gostasse de aprender.

Naquele tempo, os mais pobres não tinham hipótese nenhuma de ir além do 2.º Grau da Instrução Primária. E mesmo isso nem todos. Muitos, na idade de irem para a escola, iam era trabalhar, como já referi noutra parte destas minhas memórias (“Inspeção para o Serviço Militar”).
Casos como o da ilustre figura de cidadão e de matemático que foi Bento de Jesus Caraça, a quem os patrões dos pais assumiram o encargo dos seus estudos após a sua aprovação no Ensino Primário, constituíam, como é bom de ver, excepção assinalável. Como excepção igualmente assinalável era um jovem ir para a tropa analfabeto e daí a alguns anos estar licenciado, por sinal, no caso a que me vou referir, também em matemática.
E refiro-me a Abel Febra, que foi o meu professor de matemática no 2.º Ciclo do Liceu, na escola que a PSP abriu nas instalações anexas à Esquadra de Santa Marta, em Lisboa, primeiro para que os polícias que até então tivessem sido admitidos apenas com a 3.ª classe pudessem fazer a 4.ª classe, grau que entretanto passara a ser o exigido para a admissão, e depois o 1.º e o 2.º ciclos do curso geral dos liceus, tendo o 2.º ciclo sido criado precisamente no ano a seguir àquele em que eu fizera o 1.º ciclo, o que me facultou continuar o estudo e fazer, assim, também o 2.º ciclo.




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O Abel Febra aprendeu a ler e escrever nas Aulas Regimentais do quartel onde cumpriu o serviço militar, tendo, graças a isso, podido depois concorrer para a P.S.P., na qual veio a ingressar, em Lisboa.
Já na polícia, o Abel Febra encontrou-se com alguém (um Aspirante a Oficial Miliciano que tinha sido seu professor nas Aulas Regimentais) que lhe proporcionou, gratuitamente – o salário dos polícias era de fome -, a frequência de um colégio no Lumiar, no qual em três anos fez o ensino liceal, um ciclo em cada ano. Note-se que o 1.º Ciclo correspondia a dois anos de escolaridade, o 2.º a três e o 3.º também a dois. Tendo tido depois acesso à Universidade, em quatro anos (período normal) fez a sua licenciatura em matemática, graças ao que foi colocado, ainda guarda de polícia, como professor de matemática, no 2.º Ciclo, na escola da P.S.P. Aí nos conhecemos, tendo ele ficado para mim, sobretudo pela sua naturalíssima modéstia, como uma daquelas pessoas que temos a grande felicidade de encontrar na vida.

Pois bem, eu gostava de aprender, pelo que o resultado dos meus referidos encontros com o Xico Fataça foi ver-me daí a pouco a endereçar o meu pedido de inscrição no curso de Esperanto à instituição que, sediada já me não lembro onde, mas creio que lá para um dos bairros periféricos de Lisboa, o ministrava por correspondência. Como disse, a aprendizagem só era autorizada por correspondência e individualmente. Acontecia, contudo, que os 6 ou 7 da Azinhaga que já se tinham inscrito e estavam a fazer o curso se reuniam, à noite, na barbearia do pai do Xico Fataça, depois de ele fechar a loja. E não tardou muito que eu, que por sinal acabara de comprar bicicleta, o que me tornava o percurso mais fácil, começasse a ir-me juntar a eles.

Além do Xico Fataça, lembro-me que também faziam parte do grupo o Francisco Cebola (trabalhador rural), que era o mais velho de todos, o Fernando Braga (barbeiro) e o contínuo da Casa do Povo, que era ainda um meu parente, por parte da minha mãe, mas do qual há muito esqueci o nome. Havia pelo menos mais 2, ambos trabalhadores rurais. A juntar-se ao grupo veio também, uma vez ou duas, um valfigueirense tratado por António “Bartolomeu”, que suponho ter sido quem deu o curso a conhecer ao Xico Fataça. Bartolomeu, soube-o depois, era o nome próprio do pai (e não o seu apelido), que era hortelão de um dos Infantes da Câmara (o José, creio), em Vale de Figueira. Eu e o António “Bartolomeu”, que era estucador, viríamos a encontrar-nos e a conviver muitas vezes. A seu convite, logo ao princípio do nosso conhecimento, visitei-o uma vez em casa dos pais, num Domingo em que também aí se encontravam uma sua irmã e o marido, idos do Reguengo do Alviela, onde residiam, o estucador que lhe ensinara o ofício e uma sua filha, idos de Santarém.

Na fotografia que se segue, tirada no quintal do António Palmeirão em 1 de Agosto de 1948, estamos eu, à direita, e ele, a comer melão.

Recordemo-nos que em 31 de Julho, 1 e 2 de Agosto desse ano, decorreram no Pombalinho as festas em “Honra e Louvor do mártir S. Sebastião”. Estávamos, portanto, em dia de festa.






Voltando ao nosso curso de Esperanto em que nos juntávamos, julgo que não mais de uma vez por semana, tudo ia muito bem, até que as noites começaram a ficar pequenas e deixámos, por isso, de poder utilizar a barbearia do pai do Xico Fataça. Era um tempo em que as barbearias estavam abertas todos os dias (nem horário de trabalho tinham ainda, julgo eu) e se aos barbeiros apetecia ter um dia de folga era à segunda-feira, nunca aos sábados ou aos Domingos, pois estes eram os dias de maior afluência para uma clientela que trabalhava de Sol-a-Sol de segunda-feira a sábado.

Tudo ia muito bem… até ao dia em que - andava eu na medição da pedra britada exactamente entre a loja das Motas e as instalações do Registo Civil, junto ao gradeamento que separa esses dois locais - vejo passar um carro celular, popularmente conhecido por ramona, e alguém a acenar-me de dentro da viatura, por detrás das grades. Se nessa altura reconheci quem acenava, passou-me por completo, mas não me passou que daí a pouco a prisão do Xico Fataça, do Francisco Cebola e do Fernando Braga era o assunto de todas as conversas na Azinhaga e no Pombalinho.
Eram eles, pois, os “passageiros” da ramona que me acenavam, com destino a Santarém, e toda a gente sabia que a justificação apresentada foi a aprendizagem do Esperanto em grupo. O que me levou logo a deitar por contas que o melhor era ir pondo as barbas de molho.
O que se propalava então era que os esperantistas da Azinhaga, não podendo já dispor da barbearia do pai do Xico Fataça para nos reunirmos, pelos motivos acima mencionados, se tinham lembrado - não se percebe lá muito bem como, dada a proibição do estudo do Esperanto em grupo e o papel desempenhado pelas Casas do Povo no Estado Corporativo que as havia criado - de pedir à Direcção da Casa do Povo um espaço para o efeito. Mais se dizia que a Direcção, não se sentindo autorizada a deliberar em tal matéria, submetera o assunto à entidade concelhia, a qual, antes de mais nada, quis saber quem eram os interessados.
E o resultado foi o que se viu: metê-los na cadeia. E eu sempre pensei que para isso muito deve ter contribuído o facto de entre eles estar o Francisco Cebola, pessoa muito conceituada entre os companheiros e cuja oposição ao Estado Novo era bem conhecida. Era “do contra”, ou “do reviralho”, como então se dizia, pelo que o mais certo era já há muito andar na mira da PIDE (ou da PVIDE – Polícia de Vigilância e Defesa do Estado – como começou por chamar-se). Esta e todo o aparelho fascista que a criara não precisavam de justificar as prisões que faziam, mas talvez não menosprezassem a apresentação de alguma motivação, pelo menos nalguns casos.

Eu ia então na quarta lição e tinha todo o material relacionado com o curso numa prateleira que o meu pai, que gostava muito de ler, mandara fazer e colocara numa parede da cozinha para nela pôr os poucos livros e outros papéis que havia em casa. Estavam lá, por exemplo, vários números de “O Mosquito”, revista infantil que eu assinara. Falando de livros, um que lá estava era “Saúde e Amor na Vida Sexual”, que eu havia comprado à sociedade com o meu primo Joaquim Correia dos Santos (o “Canca”), um livro que, por alguma analogia com o curso de Esperanto, só podia ser adquirido através dos Correios, à cobrança. Outra coisa que de vez em quando ocupava o seu lugar na dita prateleira, nunca por muito tempo, até porque era preciso fazê-la girar, era “O Avante !”, então clandestino, e por isso deixado pelos caminhos durante a noite. Por sinal, na altura da prisão do Xico Fataça, do Francisco Cebola e do Fernando Braga estavam dois exemplares de “O Avante !” bem arrumadinhos na prateleira, os quais, como está bem de ver, tratei de tirar imediatamente dali para fora. Tudo o mais que lá estava, lá ficou, pois mais nada nos pareceu subversivo, nem a mim nem ao meu pai. E fiquei à espera, mais ainda depois de, passados uns dias, terem ido à Azinhaga buscar mais 3 do grupo.

E chegou o meu dia. Estava então na medição da pedra mesmo em frente à casa do António Abegão, na berma do outro lado da estrada. Julgo que passava já um bom bocado do meio-dia quando o Júlio Barros, que era então o regedor da freguesia, se chegou ao pé de mim e me convidou a acompanhá-lo à sapataria (a sapataria do pai, o António Barros, em que ele e o irmão, também António, igualmente exerciam a profissão). A distância a percorrer era curta, mas deu para o Júlio Barros me dizer por que é que me viera chamar e fazer os possíveis por tranquilizar-me. Ao chegarmos à sapataria, apresentou-me à brigada da PSP, constituída por 2 elementos e chefiada pelo subchefe Delgado, o que significava que em Santarém, como certamente em muitas outras capitais de Distrito, não havia delegação da PIDE e que, por conseguinte, a PSP é que exercia as funções específicas da primeira. E dali partimos, passado pouco, para minha casa, para a inevitável busca. Uma busca, aliás, muito ligeira, para meu espanto, face ao que ouvira dizer sobre as buscas feitas nas casas dos presos na Azinhaga, onde até os colchões haviam revirado. Em minha casa apenas vasculharam na prateleira acima referida. Lá deram com as lições de Esperanto, a que já não sei o que fizeram (se as levaram se as deixaram ficar) e com o livro “Saúde e Amor na Vida Sexual”, sobre o qual o subchefe Delgado me observou que livros como aquele, sim, é que eu devia ler. Para a diferença de rigor na busca, contribuiu, com certeza, o subchefe Delgado e o colega terem ido ao Pombalinho numa boleia do João Andrade, que era do Pombalinho, onde ainda trabalhara no campo com o meu pai, mas que depois aprendera o ofício de pedreiro e se tornara mestre-de-obras em Santarém. Contou o Delgado (versão pouco convincente, diga-se) que ainda estavam em Santarém, ele e o colega, a prepararem-se para irem para o Pombalinho, quando se encontraram com o João Andrade e que então lhe perguntaram se ele não queria ir com eles até à sua terra. De resto, eu não vi o João Andrade senão quando entrámos todos no seu carro para marcharmos para Santarém. Antes, aproveitara para visitar a família. Não fosse o caso de ir preso, o mais certo era até ter achado que estava a dar um belo passeio, pois o Delgado decidiu dar a volta pela Azinhaga, Ponte da Golegã, Chamusca, Vale de Cavalos, Alpiarça e Almeirim, pondo assim de parte o caminho mais curto por Vale de Figueira, Alcanhões e Ribeira de Santarém.

Passei assim por terras onde nunca tinha estado (Vale de Cavalos, Alpiarça e Almeirim), e tomei um lanche num Café (em Almeirim), coisa que antes nunca me tinha acontecido. Tomei-o, claro, com os meus captores e com o João Andrade, todos sentados à mesma mesa. E por aqui se pode ver que fui sempre muito bem tratado. E é isso: penso que não teria sido a mesma coisa, do princípio ao fim da prisão, se o João Andrade não tivesse estado, de qualquer maneira, metido no caso. O facto mais saliente, porém, foi eu não ter passado de Santarém, enquanto todos os outros, com excepção do Fernando Braga (mas já veremos o que lhe aconteceu), ao chegarem a Santarém haviam sido logo encaminhados para Lisboa e enfiados nas prisões da PIDE (Aljube ou Caxias), de onde só regressaram aos seus lares passados cerca de três meses.

Chegados a Santarém, ao cair da tarde, fui levado para a cadeia e metido numa cela, incomunicável. E foi aí que, ao ser encaminhado por outras celas, que se comunicavam, para chegar à que me fora destinada, passei, com o meu acompanhante, por uma cela onde estava o Fernando Braga, o que levou o polícia a exclamar, dirigindo-se-lhe: –O quê?!... Você ainda aqui está!!!... Estava; não havia dúvida que estava. E fiquei então a saber que ele era para ter sido solto no próprio dia da prisão (o que sempre me fez supor que teria tido alguém que interferira por ele: o Serrão Faria?...), mas que se haviam esquecido dele. E já lá iam oito dias. É, de resto, o lembrar-me do que aí se disse que me leva a lembrar-me também que a minha prisão ocorreu exactamente oito dias depois da prisão dos três primeiros.

Fui então deixado numa cela com uma janela (gradea-da, já se vê) que dava para um quintal ajardinado que me pareceu ser onde o pessoal da limpeza da cidade arrecadava o seu material. E mais uma vez me senti um privilegiado, porque nenhuma das celas por onde passara até chegar ali tinha qualquer janela. Ter-me-ia sentido ainda melhor se não tivesse tanto percevejo por companhia, mas, enfim, não se pode ter tudo, não é? Ali fui deixado e ali fiquei entregue a mim próprio até uma hora já bem avançada da noite, quando me foram bus-car para interrogatório, pelo subchefe Delgado, no Comando da Cidade. Tendo voltado, assim, a percorrer, em sentido inverso, o caminho que levava à minha cela, verifiquei que o Fernando Braga já ali não se encontrava.

No interrogatório, que não durou muito tempo e findo o qual voltei à companhia dos percevejos, nada digno de registo se passou, a não ser mesmo a brandura com que o mesmo decorreu. Por onde se vê que aqui continuou a minha boa estrela.

O dia seguinte passei-o a olhar para o espaço ajardinado e para os movimentos de quem por ali passava ao alcance da minha vista, com intervalos para engolir o que me foi trazido para comer. Até que, já ao findar do dia, novamente me foram buscar para me conduzirem ao Comando, onde, pela voz do subchefe Delgado, me esperava a boa nova da minha soltura. Mas esclareceu-me ele, então, que para que pudessem soltar-me tiveram que apagar (ou riscar) o nome do meu pai de um abaixo-assinado que tinham no Comando a pedir a libertação dos presos do Tarrafal. Eu lembrava-me bem desse abaixo-assinado ter ocorri-do. Tal acontecera, aliás, não havia ainda muito tempo.

Estava eu, um dia, na alfaiataria do Manuel Braga, quando entrou o Luís Cordoeiro (o “Camões”), já não me lembro se acompanhado de alguém, mas creio que sim, com umas folhas de papel nas mãos. E então, era isso, andavam a pedir assinaturas para um abaixo-assinado a favor da libertação dos presos da PIDE no Tarrafal. Eu até quis assinar, também, mas a minha assinatura não foi aceite por, como me foi então explicado, eu não ter ainda feito os 18 anos. E não sabia que o meu pai tinha assinado. O meu pai… que no dia seguinte ao da minha prisão apanhou o primeiro comboio de Mato de Miranda para Santarém, para tentar conhecer a evolução do caso e fazer o que lhe fosse possível, se alguma coisa lhe fosse possível. Soube depois que se tinha dirigido a casa duns primos que tínhamos em Santarém, cujo chefe de família se chamava Eugénio e era o delegado de vários jornais e revistas vendidos em Santarém e, por isso, presumivelmente muito susceptível de ser bem atendido por gente influente. Pelo menos o meu pai dizia, depois, que o primo Eugénio tinha ido falar com o Comandante da Polícia de Santarém, intercedendo por mim.

Já agora – e já que nestes meus escritos deixo a memó-ria à solta – não virá muito a despropósito dizer que eu e o meu irmão, que fizemos o exame da 4.ª classe (2.º Grau de Instrução Primária) no mesmo ano, ficámos em casa destes meus primos durante mais de uma semana, no intervalo entre a prova oral e a prova escrita, que sempre decorriam na sede do Concelho. E diz-me também a memória que foi num dia que eu e o meu irmão fomos passar com estes primos a uma sua propriedade próxima da cidade que pela primeira vez, eu com 11 anos de idade e o meu irmão com 13, conhecemos o gosto da manteiga, espalhada numa fatia de pão numa das refeições ali tomadas.

Acredito absolutamente (não faria, de resto, o menor sentido duvidar, como não significa esta minha observação, evidentemente, o menor desmerecimento pelo que ele tenha feito) que o Eugénio dos jornais, como era mais conhecido em toda a cidade, tivesse interferido por mim junto do Comandante da Polícia, mas creio que o mais certo era ele nem ter tido a oportunidade de o fazer se eu, como os outros presos pelo mesmo motivo (excepto, repito, o Fernando Braga) tivesse seguido logo no mesmo dia para uma das enxovias da PIDE. E julgo que também o mais certo era eu ter seguido esse caminho sem a boleia do João Andrade à brigada chefiada pelo subchefe Delgado.
Disse-me ainda o subchefe Delgado, ao despedirmo-nos, que eu podia continuar a estudar o Esperanto, desde que cumprisse o que sobre isso estava regulamentado.

Mas eu não quis continuar…


13 de Junho de 2010