quinta-feira, 13 de novembro de 2008

José Afonso... e o mais que por acréscimo virá!


O nome por que o meu pai era conhecido no Pombalinho era o de José Afonso. O seu nome, porém, era José dos Santos. Coisa que, de resto, acontecia então com muita gente: não ser conhecida pelo seu verdadeiro nome. A prática, no Pombalinho como em todo o lado, com certeza, era alguns miúdos irem ficando conhecidos pelos nomes que os vizinhos lhes davam, por forma a evitar-se que houvesse repetição de nomes e que fosse, assim, necessário estar com mais explicações para bem se compreender de quem é que se falava, quando se falava.
No caso do meu pai, que foi registado como José dos Santos, acontece que o pai dele, que eu não conheci, se chamava Afonso dos Santos, não havendo por ali então qualquer outro Afonso, nem de seu nome próprio nem de apelido. O mais natural, comparando com outros casos, e dado que Afonso era o nome próprio do meu avô, seria que ao meu pai chamassem José do Afonso. Mas não: era José Afonso. Também pode ser que tenham começado por chamar-lhe José do Afonso e que, depois, com o falecimento do meu avô e com a mudança do local de habitação, tenha havido uma alteração para José Afonso.

A propósito, contava o meu pai que, já depois de ter cumprido o serviço militar, passou um dia pelo Pombalinho um seu ex-colega da tropa com o qual se havia dado muito bem, ambos sabendo, cada um em relação ao outro, o verdadeiro nome e a terra em que vivia.  E tendo então esse ex-colega do meu pai aproveitado a oportunidade para, se possível, se encontrar com ele, pôs-se a perguntar pelo José dos Santos. Pois bem, ninguém a quem ele perguntou por esse nome foi capaz de perceber a quem é que ele se estava a referir. Já não me lembro se alguém chegou, por outras referências, a conseguir perceber que ele afinal estava a perguntar pelo meu pai, e se ele e o meu pai chegaram ou não a encontrar-se. Tenhamos em conta, no entanto, que o encontro não seria fácil, mesmo que o meu pai tivesse sido identificado, caso o seu ex-colega estivesse apenas de passagem e isso não tivesse acontecido num Domingo ou num dia Feriado. Com efeito, tratando-se de um dia de semana, o mais provável era que o meu pai se encontrasse no campo, cumprindo mais um dia de jorna, que, como se sabe, era de sol a sol.
Uma coisa, porém, há que ter em conta: para o meu pai contar isto é porque soube que aconteceu. E para saber que aconteceu, temos a considerar duas hipóteses: ou o ex-colega, por outras referências, tal como dizer que ambos haviam feito o serviço militar no Hospital Militar (Serviços de Saúde), mais conhecido pelo Hospital da Estrela, em Lisboa, acabara por conseguir que as pessoas com quem falou o tenham identificado; ou falando essas pessoas, depois, de um indivíduo que passou por ali e perguntou por um tal José dos Santos sem que ninguém tivesse percebido de quem se tratava, isso tivesse acabado por chegar aos ouvidos do meu pai.

As indicações acima referidas ocorrem-me pelo seguinte:
Tendo cumprido o serviço militar no Hospital da Estrela, o meu pai tornara-se uma espécie de auxiliar de enfermagem. Pelo menos a dar injecções aprendera ele. E fazia-o muito bem.
Ora, ao terminar o serviço militar e voltar à terra (o Pombalinho era como se fosse a terra do meu pai, se bem que ele tivesse nascido e crescido na Quinta da Melhorada, pertencente ao João d’Assumpção Coimbra e administrativamente integrada na vizinha freguesia da Azinhaga), acho que logo começou a dar injecções a quem elas fossem receitadas pelo Dr. Victor Semedo.

Como era a situação exactamente nessa altura (1922/1923 – o meu pai assistiu, no Terreiro do Paço, à chegada de Gago Coutinho e Sacadura Cabral no regresso da sua célebre viagem aérea ao Brasil), não sei, mas melhor do que era quando eu já tinha algum entendimento (a partir dos meus 7, 8 anos – 1936, 1937, portanto), não seria.

Eu nem sei se nas Farmácias se davam injecções, mas julgo que sim, pelo menos em localidades onde não houvesse outro serviço mais adequado a esse fim. Para o Pombalinho, porém, darem-se ou não se darem injecções nas farmácias era tudo o mesmo, porque, pelo menos desde a minha infância e até hoje, que eu saiba, só houve uma farmácia no Pombalinho durante dois ou três anos, aí por volta de 1935/36. Era a farmácia do Mendonça, que assim como apareceu e se instalou na Rua de Cima (Rua Barão de Almeirim), na casa para onde mais tarde foram morar os meus primos José da Silva e a esposa, a Lucília, e onde o Silva montou a sua oficina de latoeiro e de venda e reparação de bicicletas, assim desapareceu. E nunca mais ninguém viu uma farmácia no Pombalinho. Talvez por a Azinhaga ser muito perto e, que eu me lembre, sempre lá ter havido uma, cujo proprietário e Director Técnico (a mesma pessoa e cujo nome esqueci) era de lá natural, suponho.

Foi tão fugaz a passagem do Mendonça pelo Pombalinho, e eu era tão miúdo, que se não fosse o caso de ele ter um filho pouco mais velho do que eu, do filho ter uma bicicleta e de um dia termos ido, o dono da bicicleta e mais quatro miúdos, dar um grande passeio com ele, era até capaz de me ter esquecido completamente do Mendonça e da sua farmácia. Porque, além da localização da farmácia, esse passeio foi a única recordação que me ficou dos Mendonças. E acho que vale a pena contá-lo.

Foi um passeio até para lá da linha de caminho de ferro (Linha do Norte). Para lá da linha, que ficaria aí a cerca de um quilómetro do Pombalinho e tinha ali uma passagem de nível com guarda, era “o bairro”, zona de terrenos acidentados onde predominava a mata e abundavam os escorpiões, a caminho da Quinta do Benito (do Canavarro), de São Vicente do Paul e do Sobral. Íamos, portanto, cinco na bicicleta, e nunca eu tinha visto, nem voltei a ver, uma bicicleta transportar tanta gente. Eu e o meu irmão, vinte e sete meses mais velho que eu, éramos dois deles. Os outros, excepto o dono da bicicleta, já não tenho a certeza quem fossem. Mas sem dúvida que faziam parte do grupo de brincadeiras que por ali se formava naquele tempo e naquele espaço, habitualmente constituído pelo Manuel João Bugalho, o Aníbal Condeço (Aníbal “Rato”), o Ezequiel e o Manuel Mateiro, o António Justino (o “Canário”), o Joaquim Cachado, o Arsénio Teixeira e o António Maria (da Isaura). Mas lembro-me que, além do condutor, sentado no selim, os outros quatro se instalaram como segue: um (o mais leve), sentado no guarda-lamas da roda da frente e agarrado ao guiador; outro sentado no quadro (entre o guiador e o selim); o terceiro sentado no suporte colocado sobre a roda de trás; e o quarto sentado nos ombros deste e agarrado aos ombros do condutor.

Fomos ainda um grande bocado para lá da linha (300/400 metros). Quando resolvemos parar, para voltar para trás, chegou à malta a vontade de fazer as suas necessidades fisiológicas. E, então, vá de urinar, não tendo deixado de vir à baila, como sempre que tal acontecia, o dito: “mija um português, mijam dois ou três”. Mas houve um a quem também chegou a vontade de “dar de corpo” (quem é que se lembra desta expressão?). E esse foi precisamente o Mendonça, o qual, feito o servicinho, limpou o rabo nada mais nada menos que a uma nota de 20$00, a de menor valor então existente e aquilo que o pai de qualquer um dos outros precisaria, na altura, de trabalhar pelo menos três dias para os ganhar. O que foi feito da nota, depois, não me recordo, mas ficar lá, só porque tinha servido de papel higiénico, não ficou, de certeza.
Mas se farmácia ainda houve no Pombalinho, durante dois ou três anos (a do Mendonça), já o mesmo se não pode dizer em relação a um consultório médico, pois, que eu tenha tido conhecimento, nem um só médico alguma vez lá se estabeleceu. Até hoje!...

Desde que eu me lembro, essa falta era atenuada pela contratação de um médico pela Casa do Povo, que ia duas (ou três?) vezes por semana, salvo erro da parte da manhã, dar consulta aos sócios e familiares da dita Casa do Povo disso necessitados. Desde o início desse serviço e até ao fim da sua carreira, terminada já na Junta de Freguesia, na sequência das transformações produzidas pelo golpe de 25 de Abril de 1974, sempre esse médico foi o Dr. Victor Semedo, que vivia e tinha o seu consultório em Vale de Figueira (de onde, creio, era natural), uma aldeia a cerca de 6 quilómetros do Pombalinho, distância que, enquanto eu vivi no Pombalimho, ele sempre percorreu de bicicleta a pedais. Com o andar dos tempos terá, provavelmente, mudado alguma vez de meio de transporte.
Pessoa simples, afável, a História do Pombalinho não pode ser escrita sem que nela ocupe um lugar de muita honra o Dr. Victor Semedo. A Junta de Freguesia prestou-lhe a devida homenagem quando da sua retirada e, com o seu nome dado à sala onde funciona o consultório médico e a sua fotografia exposta na sala de entrada da Junta, mantém viva a sua memória.
Para casos de urgência fora das horas das consultas do Dr. Semedo, mais uma vez estava ali mais à mão o médico da Azinhaga. Casos de urgência raríssimos, aliás, porque só mesmo na última, ou seja, com alguém quase a morrer, é que ia chamar-se o médico. Assim não sendo, esperava-se pelo dia e hora das consultas do Dr. Semedo, que ia a casa dos doentes que não estivessem em condições de deslocar-se ao consultório.

Tinha eu 18 ou 19 anos quando, precisamente, tive de ir à Azinhaga, já de noite, chamar o Dr. Rasteiro para ir ver o meu pai, que estava de cama com uma febre altíssima e, se não me engano, com cólicas. Pedalando na minha bicicleta (bem pesada, diga-se) com quanta força tinha, lá cheguei a casa do Dr. Rasteiro, depois de ter perguntado onde é que ele morava ao primeiro azinhaguense que encontrei. Uma vez pronto, montou na sua bicicleta (nesse tempo os médicos, como se vê, não ganhavam para outro meio de transporte) e, com o andamento, pouco expedito, marcado por ele, lá chegámos junto do doente. Feita a consulta, o que o Dr. Rasteiro receitou ao meu pai foi gelo (não sei se receitou mais alguma coisa), produto que o mais próximo que se poderia obter era em Riachos, localidade que ficava a uns12 ou 13 quilómetros. Não havia que hesitar. Eu tinha que pôr-me a caminho de Riachos. E quis fazê-lo logo que a necessidade do gelo foi pronunciada pelo Dr. Rasteiro. Ele, porém, ao aperceber-se que eu estava para me pôr na alheta, pediu-me que o acompanhasse até à Azinhaga. Contrariado, tanto mais que já conhecia o andamento dele, achei não ter outra saída. E lá fomos os dois, lado a lado, pedalando brandamente até mesmo à porta da sua casa, onde lhe agradeci ter ido fazer a consulta e tomei outra velocidade até aos Riachos.

Descoberta, aí, a empresa distribuidora de peixe que fabricava o gelo, e dito ao que ia, fui ali muito bem atendido. Há muita coisa que esquece, ao fim de tanto tempo, e esta foi uma delas, mas a impressão que em mim perdura é que o gelo me foi oferecido pelos operários da fábrica.
Regressado ao Pombalinho, foi o gelo aplicado ao meu pai, segundo as indicações do Dr. Rasteiro, e passados dois ou três dias já ele andava outra vez no campo, de enxada ou de qualquer outra ferramenta nas mãos, porque dia perdido significava o défice familiar acrescido.
Estranho, para mim, é que Augusto de Souto Barreiros não se refira a este Dr. Rasteiro na sua obra “Azinhaga – Livro de Horas”, mesmo não sendo ele natural de lá, coisa que o seu sotaque dava perfeitamente para perceber. Nem mesmo ao referir-se aos dois filhos, que, esses sim, nasceram na Azinhaga e foram, segundo o Augusto Barreiros, igualmente médicos, tendo, por conseguinte, seguido ambos a profissão do pai, faz qualquer referência à sua paternidade.
E assim como não faz referência ao Dr. Rasteiro, também não se refere, pelo menos enquanto médico, ao Dr. Acácio, que foi quem, no exercício da medicina na Azinhaga, precedeu o Dr. Rasteiro. Eu conheci-o, já velhote, deslocando-se a visitar os doentes na sua caleche conduzida pelo Sr. Anselmo.

Dizia-se deste Dr. Acácio que ele não evitava minimamente, quando apoquentado por flatulência, expelir os seus gases ruidosamente, ou seja, peidava-se, estivesse onde estivesse. No Pombalinho dizia-se que isso tinha acontecido uma vez quando ele estava a consultar uma das filhas da D. Amélia Barreiros, por sinal minha vizinha e avó paterna do Augusto de Souto Barreiros. E acrescentava-se que a resposta dele a quem quer que alguma vez se mostrasse espantado perante tal comportamento, era que não ia deixar estragar uma caldeirada de tripas por causa de um dedal de vento.
Menciona o Augusto de Souto Barreiros, a certa altura da sua obra (pág. 44), um Dr. Acácio Borges Pereira da Silva, mas apenas por este ter sido provedor, durante dois mandatos, da Santa Casa da Misericórdia da Azinhaga. Fá-lo ao enunciar uma lista de provedores da mesma entre 1870 e a sua extinção, o que terá ocorrido por volta de 1950. Presumo que se trate do mesmo Dr. Acácio, nada me permitindo, todavia, dá-lo como certo.

Voltemos ao meu pai.
Segundo o seu Registo de Nascimento, o meu pai nasceu em 5 de Setembro de 1900, na Quinta da Melhorada, como já disse. Porém, o que sempre lhe ouvi dizer era que fazia anos a 6 de Setembro.
Filho mais velho de Afonso dos Santos e de Maria Cecília (conforme consta no Registo de Nascimento do meu pai) ou Maria da Conceição (como consta no meu), ambos nascidos na freguesia de Casével, também do Concelho de Santarém, creio que o meu pai, com a mãe e os irmãos, terão deixado a Melhorada devido ao falecimento do meu avô, pois deixavam, assim, de ter direito a casa, e se mudaram então para o Pombalinho.

A propósito de Casével, terra, por conseguinte, dos meus ascendentes paternos, alguma vez ouvi o meu pai dizer que ainda éramos parentes do General Humberto Delgado. Ora, Humberto Delgado é natural de Boquilobo, que é terra vizinha de Casével, embora se trate de povoações pertencentes a Concelhos diferentes: Casével ao Concelho de Santarém; Boquilobo ao Concelho de Torres Novas. Terá tal afirmação do meu pai algum fundamento?

Julgo que, ao sair da Melhorada, o meu pai ainda não tinha ido para a tropa, mas não deveria estar muito longe disso. A fotografia mais antiga que dele tenho foi tirada quando ele cumpria o serviço militar. É uma daquelas fotografias de estúdio, em pose. Uma fotografia colorida, coisa que, naquele tempo, só podia basear-se ainda, certamente, na invenção dos irmãos Lumière, em 1904, com a utilização de placas de vidro, pois que se passaram então mais de 30 anos até ao aparecimento da película colorida. 




Arrimado a um móvel florido e com mais flores, todas artificiais, suponho, por detrás, em vasos e jarras, o José Afonso, na sua farda de gala, a que não falta o distintivo dos Serviços de Saúde (uma braçadeira), em cabelo, de relógio de pulso e a agarrar um par de luvas, está um galã. O relógio de pulso deve ter sido emprestado por alguém; as luvas deviam fazer parte do uniforme.
Como qualquer um, o meu pai tinha os seus amigos predilectos, entre os quais se contavam o António da Clotilde, o António da Azinhaga, o Augusto Anastácio (ver os capítulos “Dá alguma coisa ao necessitado?” e “Um Gigante”) e o Francisco Mação.

O António da Clotilde (Clotilde era o nome da mãe), ou, mais coincidente com a forma como era realmente tratado, o Tóino da Cotildes, chamava-se de facto António Martins, mas também havia muito pouca gente que o soubesse. Ele e a esposa, a Maria Amália, foram os meus padrinhos de baptismo e do meu irmão, tendo os meus pais sido padrinhos, também de baptismo, e depois de casamento, creio que de todos os seus cinco filhos: José, Ermelinda, Edmundo, Rui e Georgina. E foram igualmente padrinhos de baptismo das duas filhas, a Carolina e a Rosalina, do Augusto Anastácio.

O António da Azinhaga era assim conhecido no Pombalinho por ser da Azinhaga e, certamente, deslocar-se bastante ao Pombalinho e ali ter arranjado amigos, num tempo em que isso não era muito vulgar. É o que eu penso, agora, ao reflectir sobre isso, porque Antónios, na Azinhaga, não haviam de faltar, como não faltavam nem faltam em qualquer outro canto de Portugal onde haja duas ou três centenas de homens. O seu nome era António dos Santos, não tendo, contudo, apesar do apelido de ambos ser o mesmo, qualquer grau de parentesco com o meu pai.
Aliás, o António da Azinhaga (vou continuar a chamar-lhe assim) era casado com uma mulher do Pombalinho. Para que tal casamento tenha tido lugar, será de presumir que o casal tenha deparado com algumas más vontades ao princípio do namoro. Isto, porque as relações entre os da Azinhaga e os do Pombalinho nem sempre haviam sido de cordialidade. Ouvi algumas vezes o meu pai, e não só, contar que durante a infância dele dava briga certa os de um ou de outro lado serem apanhados pela parte contrária depois de passada a “oliveira grossa”, oliveira esta que ficava à beira da estrada que liga as duas freguesias, do lado esquerdo no sentido Pombalinho/Azinhaga, sensivelmente a meio do caminho, e que, por se distinguir das outras em relação à sua grossura (daí o epíteto, naturalmente) ali serviu sempre como ponto de referência não só para a então livre deambulação de pombalinhenses e azinhaguenses, como para qualquer outra casual circunstância. E só por isso devia ter sido poupada à razia dada às oliveiras na região.

No meu tempo de jovem tais hostilidades já haviam desaparecido, se de facto alguma vez existiram. Não é de pôr-se de parte que houvesse algum exagero nessa afirmação. Mas a resistência a que rapazes da Azinhaga viessem namorar raparigas ao Pombalinho, essa perdurava. Se o mesmo acontecia no caso inverso, não sei. O que sei é que para os apaixonados não há barreiras intransponíveis. E, por conseguinte, casamentos entre pombalinhenses e azinhagueiros não faltavam. Talvez porque nesta coisa de namoros e casamentos o que mais do que tudo sempre contou muito foi ser-se ou não de “boas famílias”. E não deixa de contar ainda, se bem que, graças a uma muito maior independência económica e concomitante escape a uma subordinação paternal de que uma grande parte dos jovens hoje goza, não tanto. 

Como teria sido no caso do António da Azinhaga e da mulher: um amor que se sobrepôs a todas as contrariedades e resistências, ou um amor facilitado pelo aval das “boas famílias”? O nome dela, que tantas vezes pronunciei, é um dos tantos que, com muita pena minha, já se me esvaiu da memória. Lembro-me, no entanto, que era irmã de um Marcelino casado com a Júlia Cavaco, filha do Manuel Cavaco, da Estalagem do Pocinho. Continuo a falar do António da Azinhaga, porque, a meu ver, era uma personalidade muito interessante. Teve a infância, a adolescência e a entrada na idade adulta comuns aos camponeses - vida de pobretana, por conseguinte -, o que me permito afirmar por ele e o meu pai terem sido companheiros e amigos já por esses tempos. Mas depois tornou-se negociante e eu conheci-o já a residir no Entroncamento, com a família (a mulher e três filhos, uma rapariga e dois rapazes) e com um hóspede (um jovem barbeiro da Azinhaga a trabalhar no Entroncamento, que acabou casando com a filha).

O António da Azinhaga tinha uma grande horta lá no Entroncamento, perto de casa. E o meu pai ia passar grandes temporadas a tratar dessa horta, recebendo pelo trabalho o salário combinado e habitando com eles, o que quer dizer com comida e dormida, como se de mais um familiar se tratasse.
Fora isso, o meu pai decidia, uma vez por outra, ir até ao Entroncamento, para visitar os amigos. O dia escolhido tinha de ser, logicamente, um Domingo ou um Feriado em que não houvesse trabalho para fazer nas searas ou nas eiras. E como havia uma feira mensal no Entroncamento, em determinado Domingo do mês (o último, salvo erro), o dia escolhido era normalmente um desses Domingos de feira. O percurso, de cerca de 17 quilómetros, por estrada e por atalhos, era feito a pé, para um lado e para o outro. Naquele tempo, o Pombalinho não era ainda servido por nenhum serviço de transporte colectivo. Mesmo que fosse, o percurso não deixaria por isso de ser feito a pé, certamente. Porque, havendo ligação ferroviária de Mato Miranda, a cerca de quilómetro e meio do Pombalinho, ao Entroncamento, local da principal oficina ferroviária do país, a viagem continuava sendo feita a pé. Julgo, porém, que a causa talvez nem sempre fosse a pobreza reinante. Talvez fosse também (em relação ao comboio, claro) uma questão de horários.

Algumas vezes eu fiz essa jornada com o meu pai. Outras vezes com o meu pai e com o meu irmão. Partíamos de madrugada. Chegávamos à Golegã já com o dia a romper e as tascas a abrir, numa das quais emborcávamos o nosso cálice de aguardente. Continuávamos a caminhada por estrada até um bocado para lá do cemitério da Golegã e enveredávamos então por atalhos até ao Entroncamento, onde nunca chegávamos sem que muito antes sentíssemos uma necessidade premente de despejar o conteúdo clarinho e fumegante da bexiga, efeito evidente da aguardente.

Falando do cemitério da Golegã, não pode deixar de citar-se a singular quadra que o mesmo ostenta à entrada:

Ó tu mortal que me vês
Repara bem como estou
Eu já fui como tu és

E tu serás como sou

Chegados ao Entroncamento, logo nos encaminhávamos para casa do António da Azinhaga, onde chegávamos ainda bastante cedo e éramos recebidos com evidente satisfação. Então, além dos momentos que passávamos confraternizando com aqueles amigos e que geralmente incluía uma visita à horta, íamos à feira e passeávamos pela vila, sempre com uma ou duas passagens pela ponte que, para encurtar caminho entre dois lados da vila, que nasceu e cresceu à volta das instalações ferroviárias, passava por cima das oficinas e das linhas, onde nunca faltavam comboios em movimento, com as máquinas expelindo o seu denso fumo negro, pois não havia ainda nenhuma linha de caminho de ferro electrificada.

Curioso é que o meu pai procurava sempre que apanhássemos com o fumo na cara e o aspirássemos, porque, dizia ele, fazia bem aos pulmões. Ora, como há muito se sabe, nada mais ao contrário, podendo até a inalação de fumo levar à morte, por intoxicação.
Mais curioso ainda é, no entanto, que ao estar eu a escrever isto, em princípio de Novembro de 2005, deparo, na “Visão” de 25 de Agosto do mesmo ano, com um artigo com os seguintes título e subtítulo:

Monóxido de carbono que trata
Miguel Soares chegou a uma conclusão impensável: o gás tóxico dos tubos de escape dos carros pode combater o entupimento das artérias

E vale com certeza a pena transcrever a parte inicial do artigo, até para sabermos que este Miguel Soares não é um qualquer. Ei-la:

Por mais estranho que pareça, esclerose múltipla, malária, rejeição em transplantes e arterosclerose têm um factor em comum: a resposta inflamatória, ou seja, a forma como o corpo reage a um microorganismo ou a uma lesão de um tecido. «Tem-se a ideia de que é uma coisa má, mas é essencial à vida», explica o investigador Miguel Soares. A arterosclerose pode ser vista como um processo inflamatório que acontece nas paredes dos vasos sanguíneos, à conta da acumulação de gordura. Num artigo publicado na revista Nature, enquanto ainda trabalhava na Escola Médica de Harvard, em Boston, Miguel Soares demonstrou que o monóxido de carbono (sim, o gás tóxico libertado pelos tubos de escape dos carros) é capaz de reverter os efeitos da doença. «Neste momento, há nove patentes referentes aos direitos de exploração do monóxido de carbono como substância terapêutica. Ora bem, não sei se estarei enganado, mas julgo que o fumo libertado pelas máquinas movidas a carvão contém igualmente monóxido de carbono. E, assim sendo, será caso para dizer que, afinal, o meu pai já tinha descoberto as funções terapêuticas do monóxido de carbono nos longínquos anos da década de 40 do Século XX... Ah grande Zé Afonso!!!...

Foi nas andanças com o meu pai pelo Entroncamento que a primeira vez ouvi falar de relações sexuais entre dois irmãos. Numa relação incestuosa, portanto. Note-se, contudo, que na altura esse era um termo fora do nosso vocabulário. E para o meu pai me contar e eu entender o que se passava, nem foi necessário. Tratava-se de um casal já com uma filha e estabelecido com mercearia e vinhos, se a memória me não falha, não muito longe da residência do António da Azinhaga. Interessante é que, para os tão arreigados preconceitos da época, sobretudo para os relacionados com a sexualidade (haverá grande diferença entre o que era e o que é?), o casal e a filha viviam sem sobressaltos provocados por hipotéticos puritanos ofendidos com a sua relação fora dos cânones éticos e religiosos.

O António da Azinhaga tornara-se então negociante, como já foi referido. Foi, de resto, em sua casa que eu pela primeira vez vi um telefone e uma máquina de escrever, instrumentos sem dúvida necessários, se não mesmo indispensáveis, ao seu modo de vida. Não sei em que é que ele negociava, exactamente. Possivelmente em tudo que se lhe deparasse que desse para comprar e vender com lucro, especialmente se lho vendessem fiado. De dois negócios feitos por ele lembro-me eu, um de ouvir contar, o outro de o ter conhecido directamente. O de “ouvir contar” tratou-se de uma compra a crédito, ao João d’Assumpção Coimbra. O que se contava era que a certa altura o Coimbra, comentando com alguém uma venda de azeite feita ao António da Azinhaga, azeite esse de que nunca mais recebera o respectivo valor, dizia: -Ah... ele não mo pagou, mas eu vendi-lho bem vendido! Por outras coisas que se contavam do Coimbra, não será muito de estranhar que também tenha acontecido essa.
O negócio que eu lhe conheci directamente foi a compra da azeitona, ainda na árvore mas pronta a varejar, de um olival pegado à horta do Romeu, logo a seguir ao Casal Centeio. E o conhecimento directo veio-me do facto de eu próprio (então com 14 ou 15 anos ou por aí perto), o meu pai e o meu irmão termos andado, juntamente com um rancho de gaibéus, na colheita dessa azeitona, coisa que deve ter durado para aí duas ou três semanas.

Pode não ter nada a ver, mas quando reflicto sobre isso penso que foi daí, do convívio com esses gaibéus, que mais comecei a dar conta das diferenças nos usos e nos costumes de umas terras para outras. E a diferença, neste caso, era que enquanto certos termos de calão que no Pombalinho não podiam ser ditos por homens em frente de mulheres sem que tal fosse tomado por ofensa grave, entre os componentes daquele rancho, parte dos quais familiares muito próximos entre si (pais com seus filhos e filhas ainda solteiros), valia tudo, sem o mínimo constrangimento.

No Pombalinho, até “porra” era obscenidade grossa e, por isso, me valeu uma vez uma valente bofetada da minha mãe. Estávamos no inverno e em casa, num dia à noite. Eu ia a subir para a lareira, para me aquecer, como era hábito nas casas dos pobres. Ao subir, porém, descuidei-me e dei uma cabeçada na trave em que assentava a parede da chaminé. E aí vai “porra!”, exprimindo, em voz alta e bom som, o meu sentimento de dor. Ora, a minha mãe estava mesmo ali, e não gostou.

Além da visita à feira, o meu pai não deixava nunca de visitar o Jardim da vila, com cujo jardineiro acabou por familiarizar-se. Ficavam sempre os dois a conversar sobre flores um bom bocado e o meu pai só de lá saía sem alguma flor (pé transplantável, bolbo, sementes, etc.) para o seu jardim se a visita calhasse numa altura em que não houvesse mesmo nada que para tal se prestasse.
O mesmo acontecia, aliás, nas suas idas a Santarém por ocasião da feira anual que ali se realizava, já não sei se em Setembro se em Outubro, algumas das quais fizemos também juntos, ele, eu e o meu irmão, e igualmente a pé, pelo menos para lá. No regresso, creio que uma vez ou outra fizemos a viagem de comboio. Nunca ficava por fazer uma visita ao jardim das Portas de Sol e uma conversa do meu pai com o respectivo jardineiro. A não ser que ele lá não estivesse na altura. Mas se estivesse, o mais certo era o meu pai não sair das Portas do Sol também sem alguma coisa para o seu jardim. Como já referi ao falar dos quintais, as flores eram sem dúvida o grande hobby do meu pai.

Nos quintais das casas em que morámos não ficava um bocadinho que pudesse ser aproveitado para isso em que o meu pai não plantasse flores ou não colocasse vasos, tanto num caso como no outro cultivando espécies das mais variadas. Vasos, havia-os pelo chão e em armações de madeira com várias prateleiras, tudo por ele preparado em função do espaço. Até uma flor aérea o meu pai teve. Os seus ramos eram muito parecidos com os de um craveiro e estava colocada num bocado de rede metálica, com as raízes expostas ao ar. Precisava era de ser regada. Nunca vi outra em mais parte nenhuma.

Virá a propósito dizer que morámos em 5 casas. As duas primeiras, na Rua Carolina Infante da Câmara, eram do Manuel Mateiro e depois dos filhos: a Justa, a Verónica, a Francisca (Xica) e o Pedro.  A primeira, pegada à habitação dos donos e com um quintal comum, foi para onde os meus pais foram morar quando se casaram e onde nascemos o meu irmão e eu. A segunda era pegada à primeira, mas fazia parte de um outro corpo arquitectónico. A mudança efectuou-se por conveniência dos proprietários, mas mais tarde voltámos à procedência. E ali ficámos até que os donos precisaram da casa. Tudo processado em boa harmonia (era impossível não se processar tudo em boa harmonia com aquela família), tivemos então de sair dali, tinha eu 16 ou 17 anos. Como havia uma certa urgência por parte dos proprietários e não era fácil encontrar casa para arrendar naquela altura, fomos para a primeira que apareceu, no Pátio do Neto e propriedade do António Abegão. Porém, por a casa ser pequena e nem quintal ter, ficámos ali pouco tempo, tendo então mudado para uma casa do Manuel Sacola, na Rua 1.º de Dezembro (Rua de Baixo), onde ficámos até eu ir para a tropa. E estava eu ainda na tropa quando os meus pais se mudaram para uma casa do meus tios Manuel Afonso (Manuel dos Santos) e Maria Calada, na Rua de Santo António.

Na primeira habitação, todo o quintal comum, que tinha um poço, um tanque para lavagem de roupa, uma pereira e, salvo erro, uma parreira, era ajardinado pelo meu pai. Contíguo ao quintal, havia um forno e espaço para os galináceos, para os coelhos e para uma cabra, espaço esse que, embora protegido da bicharada daninha (ginetos e toirões) por rede metálica, não se livrou de, duas ou três vezes, que me lembre, ter sido invadido por essa bicharada, que sempre deixava estragos.
O corpo de que a segunda habitação fazia parte ligava-se - pela frente e por uma dupla varanda sem resguardo (uma vez desmandei-me dela abaixo, mas a amachucadela não foi grande) e com degraus a meio, para acesso aos dois lados - a uma construção igual, pelo exterior (eram, digamos, casas geminadas), mas que, no interior, não tinha qualquer divisão e servia de celeiro. E foi nesse celeiro, precisamente, que assisti pela primeira vez, era ainda bastante miúdo, a ensaios de um rancho folclórico, cujo ensaiador era o meu pai.

Não sei se já andaria na escola, para a qual entrei em 7 de Outubro de 1937 (7 de Outubro era a data, naquele tempo, da abertura do ano lectivo). Tendo eu nascido em 10 de Novembro de 1929, faltavam-me, então, apenas um mês e 3 dias para fazer os 8 anos. E não entrara no ano anterior porque, nesse tempo, a entrada para a escola só era autorizada com os 7 anos já feitos. Apesar de no ano anterior o meu pai ter antes falado com a professora, que era a Maria José de Moura Amorim, no sentido de ela me deixar entrar, visto faltar tão pouco tempo para eu fazer os 7 anos, e de ela lhe ter dado uma negativa, o meu pai mesmo assim me mandara para a escola, de bolsa às costas, a ver se pegava. Mas a professora não foi na cantiga. Mal me topou, perguntou-me o que é que estava ali a fazer. Eu nem sei se lhe respondi alguma coisa, se não; o que sei é que ela me mandou embora.

Pelas traseiras dessas casas geminadas e do largo portão de ferro que às mesmas se seguia e dava aceso às traseiras, situavam-se o curral dos bois (o Manuel Mateiro tinha uma junta de bois), o palheiro, uma pequena moradia, também alugada (habitavam nela o José Chicharro, com a mulher, a senhora Angélica, e um filho, também José e também Chicharro), e grandes espaços, em parte aproveitados para estrumeira e para as pocilgas dos porcos dos inquilinos.

Havia ainda um bocado de terreno, lá para trás do curral e do palheiro, que era cultivado pelo meu pai. Dadas as suas diminutas dimensões, nem será muito apropriado chamar-lhe horta. Plantavam-se ali umas couves, uns tomateiros, uns feijões verdes, tudo em pequena quantidade. Mas foi ali também, talvez devido ao secretismo de que devem revestir-se as experiências científicas, que o meu pai, enxertando hastes de craveiro em pés de couve, andou a ensaiar a criação de craveiros que dessem cravos verdes. Não resultou, mas, pronto... de falta de espírito científico é que não poderão acusá-lo...

A terceira habitação, a do Pátio do Neto, era, como já referi, muito pequena e nem espaço próprio tinha onde o meu pai pudesse dedicar-se ao seu tão apaixonado cultivo de flores. Por isso, como também já referi, lá ficámos muito pouco tempo. Já a quarta, na Rua de Baixo, além de ter as dimensões mais comuns nas casas de duas divisões apenas (cozinha e casa de fora), tinha nas suas traseiras um poço e espaço para horta e para o meu pai se dedicar à vontade às suas flores. E também tinha forno, logo à saída da cozinha. Não sei por que é que os meus pais se mudaram dessa casa, pois me encontrava então a cumprir o serviço militar, mas suponho que terá sido também por os donos, o Manuel Sacola e a mulher, a senhora Luísa, terem necessitado dela.


E dali se mudaram, então, para a Rua de Santo António, para uma casa dos meus tios Manuel Afonso e Maria Calada, casa esta com quatro divisões, pois dispunha de dois pequenos quartos, um anexo à cozinha e outro à casa de fora, este com uma janela para a rua. O espaço ocupado por toda a habitação não era, porém, muito diferente do comum, o que significa que o espaço dos quartos fora “roubado” à cozinha e à casa de fora. O facto de dispor dos dois quartos não deixava, contudo, de a tornar uma habitação melhorada.



Casa da Rua de Santo António, com a minha mãe à porta e com a frontaria engalanada para a passagem de uma procissão.



Também aqui havia um poço, logo à saída da cozinha, e um grande quintal com uma saída para a Rua 1.º de Dezembro. Não faltava, assim, terra para horta e para jardim. Na horta, lembro-me eu de o meu pai ter experimentado plantar batata doce, e também me lembro que o resultado foi negativo. E foi aí que os meus pais moraram até aos princípios de 1978, quando uma grande cheia deitou a casa a baixo, deixando-a inabitável, o mesmo tendo acontecido a mais três ou quatro.

Eu tinha estado no Pombalinho, de férias, em Setembro e Outubro de 1977. Havia então comprado um álbum em que colocara todas as fotografias que os meus pais tinham a granel pelas gavetas, algumas delas de grande interesse documental, especialmente em relação aos trajes, como, por exemplo, o uso da jaqueta, então já em desuso. Para além, naturalmente, do valor estimativo de todas elas.

A inundação da Rua de Santo António dera-se repentinamente e durante a noite, creio eu, com a água vinda em força do lado do campo da Golegã, depois de galgado o Dique dos Vinte. Não houve, assim, tempo para se salvar sequer o que mais se desejasse salvar. E lá se foi também o álbum ao molho, durante horas e horas, nada ou muito pouco dele se tendo podido aproveitar. E não havendo, então, no Pombalinho, casas para arrendar, foram os meus pais viver com o meu irmão e a minha cunhada, no Laranjeiro.

Sei, por uma sua certidão de nascimento, que os meus pais casaram no Reguengo do Alviela, freguesia de São Vicente do Paul, de onde a minha mãe era natural, em 14 de Maio de 1927. E sei que o meu irmão nasceu em 28 de Julho do mesmo ano. Por onde se vê que, caso o meu irmão não tenha tido um nascimento prematuro (os nascimentos aos 7 meses de gestação não eram invulgares), a minha mãe já ia grávida de 7 meses quando do casamento. Nascida a 10 de Junho de 1903, tinha então 24 anos. E o meu pai quase 27. Passando portanto um poucochinho já a média das idades com que as pessoas do seu escalão social e por aqueles lados casavam naquele tempo. E há que ter em conta que uma gravidez, ou mesmo o conhecimento de que os namorados teriam muito simplesmente chegado a vias de facto no que diz respeito a relações sexuais (casos raros, no Pombalinho e no Reguengo), eram factores que apressavam o casamento. Normalmente, isso constituía, de resto, um transtorno para os pais dos noivos, a maioria dos quais muito pobres, porque a criação das condições para a boda requeria o seu tempo de preparação, motivo pelo qual os casamentos eram sempre marcados com alguns meses de antecedência, os meses necessários para, pelo menos, se criar um carneiro. Só para o casamento de filhos de pais extremamente pobres ou em período de dificuldades acrescidas não haveria a matança de um carneiro, por parte de cada família, para a boda. De qualquer maneira, quase ninguém dispunha de meios para comprar um carneiro na altura em que precisasse dele. O recurso era comprar um cordeiro e criá-lo. E era o que se fazia.
Os meus pais casaram então em 14 de Maio de 1927. Nesse mesmo ano, em 28 de Julho, nasceu o meu irmão, a que foi dado o nome completo de António Afonso dos Santos, e em 10 de Novembro de 1929 nasci eu, Guilherme Afonso dos Santos. O que quer dizer que o meu pai tinha 29 anos quando eu nasci, e a minha mãe 26.

Como já vimos, o meu pai regressou então da tropa a saber dar injecções. E com certeza a saber tratar de feridas, também. Mas isso, normalmente cada um tratava das suas. E até lá para 1944 ou 1945 não houve mais ninguém no Pombalinho que soubesse dar injecções. Foi até o Abel Júlio (pedreiro, e mais tarde meu cunhado) e o Veríssimo Duarte (barbeiro) terem igualmente regressado do serviço militar a sabê-las dar. Mas nem por isso o meu pai deixou alguma vez de ter os seus “clientes”. Quanto mais não fosse, por uma razão muito simples: o meu pai nunca cobrou nada a ninguém pelas injecções que dava, ao passo que o Veríssimo cobrava qualquer coisa. O Abel, não me recordo se cobrava alguma coisa.

De facto, o meu pai nunca levou nada a ninguém pelas injecções que deu. E muitas vezes isso exigia-lhe grande abnegação. As injecções eram às meias dúzias e às dúzias e tinham, geralmente, que ser dadas em dias seguidos. Ora, o meu pai trabalhava de sol a sol, de segunda-feira a sábado. As injecções, portanto, excepto ao Domingo, tinha que dá-las depois de, ao sol-posto, largar o trabalho. Fosse qual fosse a estação do ano, e no Verão os dias em Portugal chegam a ter, de sol a sol, 15 horas. Se o doente podia andar, vinha ele a minha casa, dando o meu pai aí a injecção, depois de ferver a seringa e a agulha na caixinha metálica que tinha própria para isso e de passar um bocado de algodão embebido em álcool na parte do braço ou da nádega onde ia espetar a agulha. Se o doente estava acamado, tinha o meu pai que ir, com o seu estojo, a casa dele. Quando o doente residia na aldeia, o esforço exigido ao meu pai não era grande, visto tratar-se de uma povoação de casario aglomerado. Embora fosse raro, acontecia, porém, uma vez por outra, o doente morar pelos arredores. Caso dos pescadores, por exemplo, na margem do Tejo, do lado do Pombalinho (margem direita), nada menos do que a cerca de dois quilómetros de distância. E de um pescador me lembro eu a quem o meu pai andou a dar injecções deslocando-se a casa dele, à borda do Tejo: o António Lobo. Uma vez, pelo menos, teria eu 7 ou 8 anos, acompanhei o meu pai a casa do pescador. Passado algum tempo, ia eu a sair de casa para a brincadeira, vejo o António Lobo a chegar com um grande peixe. Perguntou-me, não sei se pelo meu pai se pela minha mãe. Voltei atrás, para ir chamar quem quer que estava em casa, e fiquei depois a assistir à oferta daquele peixe enorme como agradecimento por o meu pai lhe ter andado a dar as injecções.

Com efeito, o meu pai nunca cobrou nada a ninguém pelas injecções que deu. Acontece, porém, que as pessoas, e os pobres talvez mais que os outros, gostam de manifestar o seu reconhecimento a quem lhes faz algum bem, sobretudo se desinteressadamente. Daí que, passado mais ou menos tempo sobre cada dose de injecções terminada, o próprio “injectado” ou alguém da família viesse bater à porta da minha casa com qualquer coisa nas mãos (um frango ou uma galinha, um coelho ou uma dúzia de ovos...), como forma de agradecimento.

Além disso, e ainda pelo mesmo motivo, não faltava nunca, ao Domingo, na “Praça” (ver capítulo com este titulo), quem quisesse pagar um copo ao José Afonso.




A Praça, em 1964, já os trabalhadores rurais eram poucos.




Não sei se por isso se por outra coisa, a verdade é que, a partir de certa altura, aos Domingos, depois da “Praça”, o meu pai começou a chegar a casa quase sempre com um grão na asa. Porém, muitas vezes se seguia a semana toda sem sequer molhar o bico. Ia para casa ao regressar do trabalho e não saía mais, a não ser para ir dar alguma injecção, após o que também regressava logo a casa.
Mas houve um Domingo em que quem tinha um grão na asa era eu. Um Domingo à tarde em que estava sozinho em casa, tinha 18/19 anos, e em que chegou uma senhora a quem o meu pai andava a dar injecções. E o que havia então de se me ter metido na cabeça? Dar eu a injecção à senhora, nem mais nem menos. Disse-lhe então que o meu pai não estava, mas que eu também sabia dar injecções, pelo que podia dar-lhe eu a sua injecção.
E não é que a senhora aceitou?!... Pois bem, foi só pôr-me a fazer o que tantas vezes vira o meu pai fazer: pegar na caixinha metálica, enchê-la de água, meter nela a seringa e a agulha e pôr tudo ao lume. E a seguir fiz o resto: ensopei um bocado de algodão em álcool, esfreguei-lho no braço, onde era dada a injecção, preparei a seringa com o líquido da ampola... enfim, tudo como devia ser. E assim dei, na perfeição, a minha primeira e única injecção. O que o meu pai disse depois, não faço já a mínima ideia.

Conhecido na aldeia também como jardineiro emérito, muitas vezes os patrões para quem o meu pai andasse a trabalhar o mandavam tratar dos seus jardins. E também tratava do jardim dum senhora que vivia no Pombalinho, sozinha, numa casa logo à entrada da Rua Hilário José Barreiros, do lado esquerdo. Aliás, nessa rua só havia casas de habitação do lado direito. Residia aí, a senhora, mas o seu jardim ficava nas traseiras dum edifício então desabitado existente na Rua Barão de Almeirim, entre a habitação do Manuel Cardoso, que tinha um talho, e a propriedade, com duas moradias, do Domingos Ferrador. A habitação e o talho do Cardoso vieram a constituir o espaço ocupado pelo Café do Francisco Minderico e o referido edifício a sua habitação e da família.
Não sei qual era o nome da senhora. E creio que nunca o soube. Era referida por todos como “a Barbuda”, não lhe tendo conhecido nunca qualquer familiar. Quando do seu falecimento, não faço ideia nenhuma de quem lhe terá tratado do funeral. A Junta de Freguesia? Alguém a quem tivesse deixado os seus bens na condição de se incumbir disso?
Creio é que a casa ficou acessível a quem quisesse entrar, pois me lembro de ter estado também junto do seu cadáver. Disso... e de ter aproveitado a ocasião para surripiar um livro duma arca. Foi com certeza um dos primeiros romances que li, se não o primeiro, e que conservo na minha biblioteca. Reli-o muitíssimos anos mais tarde e achei-o um magnífico romance policial. Trata-se de “A Queda de César”, de John R. Carling, em 2.ª edição (de 1926) da Parceria António Maria Pereira e com tradução de Câmara Lima.

Digo que não sei se esse terá ou não sido o primeiro romance que li, porque, logo que eu e o meu irmão aprendemos a ler, nas noites de Inverno líamos à lareira, revezando-nos com o meu pai, romances que, se me não engano, o meu pai levava, pelo menos em parte, da Casa do Povo, na sua qualidade de Secretário da Direcção, cargo que desempenhou durante alguns anos.

Vem a propósito dizer agora que o meu pai lia com bastante desenvoltura letra impressa, mas não sabia escrever nem ler letra manuscrita. De escrita, fazia apenas o seu nome, o que lhe dava para assinar documentos, como o cartão de Secretário da Direcção da Casa do Povo, que me lembro de ter visto, e o Bilhete de Identidade, que a seguir reproduzo.






Isso se deveu ao gosto de ensinar do Júlio da Silva Freire, com certeza uma das mais ilustres figuras que o Pombalinho já teve, e ao facto de ter aprendido já a atingir a idade adulta. Eu ainda o conheci o Júlio da Silva Freire. E lembro-me bem de dois episódios da sua vida.
Segundo o meu pai contava, fez parte de um grupo de camponeses a que o Júlio Freire, nome abreviado pelo qual era mais conhecido, andou a dar aulas, à noite, gratuitamente. Penso que isso terá ocorrido apenas durante as noites maiores, já que durante as noites mais pequenas os camponeses, trabalhando de sol-a-sol, chegavam a casa exaustos e com pouco tempo para recuperar forças para um novo dia de trabalho, o que muito provavelmente os teria levado a dar as aulas por terminadas. Foi, de resto, o que aconteceu comigo numa altura em que pensei aprender música e a tocar um instrumento musical. Tinha então 18 anos.

O Augusto Diniz, que era do Pombalinho e tocava saxofone na banda da Azinhaga e em bailes, prontificou-se a ensinar-me a solfejar. Ainda me deu algumas lições, em sua casa, e ainda fui uma vez ou duas aos ensaios da banda, na Azinhaga. Mas aconteceu isso: chegaram os dias grandes e as noites pequenas, dias em que, muitas vezes, ao chegar a casa depois do dia de trabalho, me atirava para a cama e ficaria a dormir até à hora de levantar no dia seguinte se a minha mãe não me acordasse para cear. Acabei por desistir da música, embora tivesse bicicleta (fui, diga-se de passagem, o primeiro trabalhador rural a ter bicicleta, no Pombalinho) e se me tornasse mais fácil, por isso, deslocar-me à Azinhaga para os ensaios. Chego, todavia, a pensar que a minha desistência se terá devido mais à minha falta de entusiasmo pela aprendizagem da música, em que o instrumento da minha preferência era o clarinete, do que a qualquer outra coisa.
Pelo que ouvia ao meu pai, tive conhecimento de que houve um tempo em que ele se juntava, nos serões de inverno, com outras pessoas, em casa de uma delas, a ler romances, em livro e publicados nos jornais em folhetim (em “O Século”, por exemplo, então um diário afecto ao Estado Novo), que iam arranjando por empréstimo.
Uma das casas em que me lembro de ouvir dizer ao meu pai que havia participado nesses serões de leitura foi a do senhor Pedro e da senhora Preciosa, na Rua Joaquim Gonçalves Ferreira, pegada à fonte com o mesmo nome. Ao senhor Pedro conheci-o sempre como o maioral dos bois da família Menezes.  E foi assim que pela primeira vez ouvi falar de “O Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco; de “A Rosa do Adro”, de Manuel Faria Rodrigues; de “As Pupilas do Senhor Reitor”, de Júlio Dinis; de “Camilo Alcoforado”, de Campos Monteiro; de “O Conde de Monte Cristo”, de Alexandre Dumas (pai); de “A Dama das Camélias”, de Alexandre Dumas (filho), uma parte dos quais, se não todos, também lemos em casa, á lareira, nos serões de inverno.

O meu pai gostava, pois, de ler, como se vê. E isso o levou até a formar uma pequenina biblioteca, que cabia numa simples prateleira que ele mandou fazer e colocou numa parede da cozinha, com os livros que estavam ao alcance da sua bolsa: as histórias infanto-juvenis que se vendiam nas feiras e os versos que, além de se encontrarem também nas feiras, eram igualmente vendidos de terra em terra por cegos e seus acompanhantes, normalmente um tocando acordeão e o outro cantando as letras dos referidos versos. Das histórias infanto-juvenis lembro-me de “O Menino da Mata e Seu Cão Piloto”, cuja personagem principal se chamava Guilherme, um meu homónimo, por conseguinte, o que me fazia, naturalmente, ter-lhe uma especial afeição, “O João Ratão”, “Pedro Cem”, “Branca de Neve e os Sete Anões”. “O Capuchinho Vermelho”, “A Gata Borralheira”, etc..
Gostava de ler... e acho que ao meu pai devo, pelo menos em parte, o ter-se-me esse gosto pegado, também.


E ambos o devemos, por outro lado, ao Júlio da Silva Freire. Se este não tivesse tido a benemérita disposição de ensinar camponeses a ler, e não tivesse ele próprio o gosto da leitura e o dom de o transmitir àqueles com quem convivia, eu não teria por certo, hoje, tanto que contar. E que ele tinha o dom de transmitir esse gosto aos que lhe eram mais próximos demonstra-o, sem dúvida, o gosto que pela leitura era manifesto nos seus filhos, o Júlio da Conceição Freire e a Maria Generosa da Conceição Freire, e nos seus netos, com um dos quais, o filho mais novo da Maria Generosa, Júlio da Conceição Silva, tive uma relação muito próxima, acho que fortalecida precisamente devido às nossas afinidades culturais. Quando ambos trabalhávamos (e morávamos) em Lisboa, eu como guarda da PSP e ele como barbeiro, visitávamo-mos de vez em quando um ao outro e fazíamos passeios juntos, normalmente acompanhados das mulheres e dos filhos. Lembro-me de termos ido uma vez, pelo menos, à praia (fui eu até que consegui pô-lo a nadar) e de termos visitado juntos o Museu Etnográfico Leite de Vasconcelos, no Mosteiro dos Jerónimos. Depois de eu ter partido para Moçambique, a cujo embarque ele esteve presente, a nossa relação manteve-se através de correspondência durante alguns anos.


À minha partida para Moçambique, no Cais da Rocha, em 10/10/1959. António Afonso, Elvira Moreira Silveira, José António, Violante Cruz, Preciosa Narciso da Guia, Júlio da Conceição Silva, Guilherme Afonso, Ant. Afonso Cruz dos Santos


Torno ao meu pai, para evocar a sua faceta de ensaiador de ranchos folclóricos, a que já me referi lá para trás, ao falar do celeiro onde o vi ensaiar o primeiro e em que já tinha como adjunto o Francisco de Sousa, mais conhecido por Francisco Mação, que sempre fez parelha com o meu pai em todos os ranchos por ele ensaiados. Além do Mação, só me lembro que também fazia parte desse primeiro rancho, como tocador de ferrinhos, o António Cordoeiro, que sofria de ataques epilépticos e que viria a falecer devido a um acidente de trabalho, salvo erro ao cair de um andaime quando andava a dar serventia a pedreiros. Não sei se eu já então estava em Moçambique, ou ainda em Portugal, não conhecendo pormenores do acidente. Não será contudo despropositado, penso eu, relacionar tal acidente com a ocorrência de um dos seus ataques de epilepsia, doença que deveria tornar impeditiva a execução de certos trabalhos a quem dela sofre.

Mas a pobreza a muito obriga, sobretudo quando há filhos a que dar de comer e vestir, que era o caso, nessa altura, do António Cordoeiro, pessoa por quem me ficou uma grande simpatia desde o tempo dos ensaios no celeiro, era eu miúdo. Uma simpatia que, se tal é concebível, foi ainda sempre crescendo no nosso relacionamento posterior, inclusivamente como companheiros de trabalho que algumas vezes fomos, e que eu pretendi exprimir no conto “O Zé Hóstia”, nele inspirado e o primeiro do meu livro “Circuito”. Que fique claro, porém, que o Zé Hóstia não é o António Cordoeiro. Trata-se somente da personalidade em que me inspirei para criar o Zé Hóstia, pretendendo com isso, sobretudo, prestar-lhe a minha homenagem. Veja-se, a propósito, a NOTA DO AUTOR em “Circuito”, publicado na íntegra em «www.omeucircuito.blogspot.com».


Ainda sobre os ranchos folclóricos, creio que já o primeiro que o meu pai ensaiou foi a chamada dança da roca, como nos outros dois que eu sei ele ter ensaiado e cujo instrumento – a roca - se pode ver na fotografia abaixo, à frente do grupo.


Este rancho, apresentado completo na fotografia seguinte e em que ao centro da primeira fila (de cócoras) estão, por esta ordem, o meu pai, o António Rufino (acordeonista), o Francisco Mação, o José Bacalhau e o Manuel Rato, exibiu-se em 1955.









Entre os dois ranchos referidos, ensaiou (na Casa do Povo, onde assisti a alguns ensaios) um outro, teria eu 16 ou 17 anos, o que quer dizer que terá sido lá para 1946, mais ano menos ano. Relacionado com este gosto do meu pai por danças e contradanças (ele tinha, aliás, fama de bom dançarino), também o vi uma vez, ao ser solicitado para o efeito, a orientar, à hora de uma das refeições (o almoço ou o jantar) uma dança num rancho que andava na colheita da azeitona. Quando o trabalho não era pesado e os dias eram pequenos, acontecia uma vez por outra o pessoal aproveitar para dar uns passos de dança à hora da refeição. Dessa vez, como o olival dava para a estrada da estação e a refeição foi passada à borda da estrada, foi aí mesmo que se fez a dança.


E doutra vez foi mesmo na casa-de-fora da minha casa (a primeira, aquela em que eu nasci) que se realizou, à noite, o baile duma qualquer adiafa, para o que, a fim de arranjar espaço, foi preciso chegar os poucos móveis para os cantos e pô-los em cima uns dos outros. Coisa, seja-me permitido dizê-lo de passagem, que não era lá muito do agrado da minha mãe. Nem isso, nem a dedicação do meu pai aos ensaios dos ranchos folclóricos (nunca o acompanhava). Assim como não era do seu agrado, veja-se só, os cuidados que ele tinha com as flores do seu jardim. Pelo menos foi a ideia que me ficou. Não sei é se essa ideia já existia quando um dia a surpreendi a desarreigar uma roseira que o meu pai tinha plantado encostada a uma parede, no quintal da casa da Rua de Baixo, se nasceu nesse dia. Por ciúmes?... Só podia ser. Mas não deixava de colher flores para meter nas duas ou três pequenas jarras que havia em casa...