O nome por que o meu
pai era conhecido no Pombalinho era o de José Afonso. O seu nome, porém, era
José dos Santos. Coisa que, de resto, acontecia então com muita gente: não ser
conhecida pelo seu verdadeiro nome. A prática, no Pombalinho como em todo o
lado, com certeza, era alguns miúdos irem ficando conhecidos pelos nomes que os
vizinhos lhes davam, por forma a evitar-se que houvesse repetição de nomes e
que fosse, assim, necessário estar com mais explicações para bem se compreender
de quem é que se falava, quando se falava.
No caso do meu pai, que foi registado como José dos Santos,
acontece que o pai dele, que eu não conheci, se chamava Afonso dos Santos, não
havendo por ali então qualquer outro Afonso, nem de seu nome próprio nem de
apelido. O mais natural, comparando com outros casos, e dado que Afonso era o
nome próprio do meu avô, seria que ao meu pai chamassem José do Afonso. Mas
não: era José Afonso. Também pode ser que tenham começado por chamar-lhe José
do Afonso e que, depois, com o falecimento do meu avô e com a mudança do local
de habitação, tenha havido uma alteração para José Afonso.
A propósito, contava o meu pai que, já depois de ter cumprido o
serviço militar, passou um dia pelo Pombalinho um seu ex-colega da tropa com o
qual se havia dado muito bem, ambos sabendo, cada um em relação ao outro, o
verdadeiro nome e a terra em que vivia. E tendo então esse ex-colega do
meu pai aproveitado a oportunidade para, se possível, se encontrar com ele,
pôs-se a perguntar pelo José dos Santos. Pois bem, ninguém a quem ele perguntou
por esse nome foi capaz de perceber a quem é que ele se estava a referir. Já
não me lembro se alguém chegou, por outras referências, a conseguir perceber
que ele afinal estava a perguntar pelo meu pai, e se ele e o meu pai chegaram
ou não a encontrar-se. Tenhamos em conta, no entanto, que o encontro não seria
fácil, mesmo que o meu pai tivesse sido identificado, caso o seu ex-colega
estivesse apenas de passagem e isso não tivesse acontecido num Domingo ou num
dia Feriado. Com efeito, tratando-se de um dia de semana, o mais provável era
que o meu pai se encontrasse no campo, cumprindo mais um dia de jorna, que,
como se sabe, era de sol a sol.
Uma coisa, porém, há que ter em conta: para o meu pai contar isto
é porque soube que aconteceu. E para saber que aconteceu, temos a considerar
duas hipóteses: ou o ex-colega, por outras referências, tal como dizer que
ambos haviam feito o serviço militar no Hospital Militar (Serviços de Saúde),
mais conhecido pelo Hospital da Estrela, em Lisboa, acabara por conseguir que
as pessoas com quem falou o tenham identificado; ou falando essas pessoas,
depois, de um indivíduo que passou por ali e perguntou por um tal José dos
Santos sem que ninguém tivesse percebido de quem se tratava, isso tivesse
acabado por chegar aos ouvidos do meu pai.
As indicações acima referidas ocorrem-me pelo seguinte:
Tendo cumprido o serviço militar no Hospital da Estrela, o meu pai
tornara-se uma espécie de auxiliar de enfermagem. Pelo menos a dar injecções
aprendera ele. E fazia-o muito bem.
Ora, ao terminar o serviço militar e voltar à terra (o Pombalinho
era como se fosse a terra do meu pai, se bem que ele tivesse nascido e crescido
na Quinta da Melhorada, pertencente ao João d’Assumpção Coimbra e
administrativamente integrada na vizinha freguesia da Azinhaga), acho que logo
começou a dar injecções a quem elas fossem receitadas pelo Dr. Victor Semedo.
Como era a situação exactamente nessa altura (1922/1923 – o meu
pai assistiu, no Terreiro do Paço, à chegada de Gago Coutinho e Sacadura Cabral
no regresso da sua célebre viagem aérea ao Brasil), não sei, mas melhor do que
era quando eu já tinha algum entendimento (a partir dos meus 7, 8 anos – 1936,
1937, portanto), não seria.
Eu nem sei se nas Farmácias se davam injecções, mas julgo que sim,
pelo menos em localidades onde não houvesse outro serviço mais adequado a esse
fim. Para o Pombalinho, porém, darem-se ou não se darem injecções nas farmácias
era tudo o mesmo, porque, pelo menos desde a minha infância e até hoje, que eu
saiba, só houve uma farmácia no Pombalinho durante dois ou três anos, aí por
volta de 1935/36. Era a farmácia do Mendonça, que assim como apareceu e se
instalou na Rua de Cima (Rua Barão de Almeirim), na casa para onde mais tarde
foram morar os meus primos José da Silva e a esposa, a Lucília, e onde o Silva
montou a sua oficina de latoeiro e de venda e reparação de bicicletas, assim
desapareceu. E nunca mais ninguém viu uma farmácia no Pombalinho. Talvez por a
Azinhaga ser muito perto e, que eu me lembre, sempre lá ter havido uma, cujo
proprietário e Director Técnico (a mesma pessoa e cujo nome esqueci) era de lá
natural, suponho.
Foi tão fugaz a passagem do Mendonça pelo Pombalinho, e eu era tão
miúdo, que se não fosse o caso de ele ter um filho pouco mais velho do que eu,
do filho ter uma bicicleta e de um dia termos ido, o dono da bicicleta e mais
quatro miúdos, dar um grande passeio com ele, era até capaz de me ter esquecido
completamente do Mendonça e da sua farmácia. Porque, além da localização da
farmácia, esse passeio foi a única recordação que me ficou dos Mendonças. E
acho que vale a pena contá-lo.
Foi um passeio até para lá da linha de caminho de ferro (Linha do
Norte). Para lá da linha, que ficaria aí a cerca de um quilómetro do Pombalinho
e tinha ali uma passagem de nível com guarda, era “o bairro”, zona de terrenos
acidentados onde predominava a mata e abundavam os escorpiões, a caminho da
Quinta do Benito (do Canavarro), de São Vicente do Paul e do Sobral. Íamos,
portanto, cinco na bicicleta, e nunca eu tinha visto, nem voltei a ver, uma
bicicleta transportar tanta gente. Eu e o meu irmão, vinte e sete meses mais
velho que eu, éramos dois deles. Os outros, excepto o dono da bicicleta, já não
tenho a certeza quem fossem. Mas sem dúvida que faziam parte do grupo de
brincadeiras que por ali se formava naquele tempo e naquele espaço,
habitualmente constituído pelo Manuel João Bugalho, o Aníbal Condeço (Aníbal
“Rato”), o Ezequiel e o Manuel Mateiro, o António Justino (o “Canário”), o
Joaquim Cachado, o Arsénio Teixeira e o António Maria (da Isaura). Mas
lembro-me que, além do condutor, sentado no selim, os outros quatro se
instalaram como segue: um (o mais leve), sentado no guarda-lamas da roda da
frente e agarrado ao guiador; outro sentado no quadro (entre o guiador e o
selim); o terceiro sentado no suporte colocado sobre a roda de trás; e o quarto
sentado nos ombros deste e agarrado aos ombros do condutor.
Fomos ainda um grande bocado para lá da linha (300/400 metros).
Quando resolvemos parar, para voltar para trás, chegou à malta a vontade de
fazer as suas necessidades fisiológicas. E, então, vá de urinar, não tendo
deixado de vir à baila, como sempre que tal acontecia, o dito: “mija um
português, mijam dois ou três”. Mas houve um a quem também chegou a vontade de
“dar de corpo” (quem é que se lembra desta expressão?). E esse foi precisamente
o Mendonça, o qual, feito o servicinho, limpou o rabo nada mais nada menos que
a uma nota de 20$00, a de menor valor então existente e aquilo que o pai de
qualquer um dos outros precisaria, na altura, de trabalhar pelo menos três dias
para os ganhar. O que foi feito da nota, depois, não me recordo, mas ficar lá,
só porque tinha servido de papel higiénico, não ficou, de certeza.
Mas se farmácia ainda houve no Pombalinho, durante dois ou três
anos (a do Mendonça), já o mesmo se não pode dizer em relação a um consultório
médico, pois, que eu tenha tido conhecimento, nem um só médico alguma vez lá se
estabeleceu. Até hoje!...
Desde que eu me lembro, essa falta era atenuada pela contratação
de um médico pela Casa do Povo, que ia duas (ou três?) vezes por semana, salvo
erro da parte da manhã, dar consulta aos sócios e familiares da dita Casa do
Povo disso necessitados. Desde o início desse serviço e até ao fim da sua
carreira, terminada já na Junta de Freguesia, na sequência das transformações
produzidas pelo golpe de 25 de Abril de 1974, sempre esse médico foi o Dr.
Victor Semedo, que vivia e tinha o seu consultório em Vale de Figueira (de
onde, creio, era natural), uma aldeia a cerca de 6 quilómetros do Pombalinho,
distância que, enquanto eu vivi no Pombalimho, ele sempre percorreu de
bicicleta a pedais. Com o andar dos tempos terá, provavelmente, mudado alguma
vez de meio de transporte.
Pessoa simples, afável, a História do Pombalinho não pode ser
escrita sem que nela ocupe um lugar de muita honra o Dr. Victor Semedo. A Junta
de Freguesia prestou-lhe a devida homenagem quando da sua retirada e, com o seu
nome dado à sala onde funciona o consultório médico e a sua fotografia exposta
na sala de entrada da Junta, mantém viva a sua memória.
Para casos de urgência fora das horas das consultas do Dr. Semedo,
mais uma vez estava ali mais à mão o médico da Azinhaga. Casos de urgência
raríssimos, aliás, porque só mesmo na última, ou seja, com alguém quase a
morrer, é que ia chamar-se o médico. Assim não sendo, esperava-se pelo dia e
hora das consultas do Dr. Semedo, que ia a casa dos doentes que não estivessem
em condições de deslocar-se ao consultório.
Tinha eu 18 ou 19 anos quando, precisamente, tive de ir à
Azinhaga, já de noite, chamar o Dr. Rasteiro para ir ver o meu pai, que estava
de cama com uma febre altíssima e, se não me engano, com cólicas. Pedalando na
minha bicicleta (bem pesada, diga-se) com quanta força tinha, lá cheguei a casa
do Dr. Rasteiro, depois de ter perguntado onde é que ele morava ao primeiro
azinhaguense que encontrei. Uma vez pronto, montou na sua bicicleta (nesse
tempo os médicos, como se vê, não ganhavam para outro meio de transporte) e,
com o andamento, pouco expedito, marcado por ele, lá chegámos junto do doente.
Feita a consulta, o que o Dr. Rasteiro receitou ao meu pai foi gelo (não sei se
receitou mais alguma coisa), produto que o mais próximo que se poderia obter
era em Riachos, localidade que ficava a uns12 ou 13 quilómetros. Não havia que
hesitar. Eu tinha que pôr-me a caminho de Riachos. E quis fazê-lo logo que a
necessidade do gelo foi pronunciada pelo Dr. Rasteiro. Ele, porém, ao
aperceber-se que eu estava para me pôr na alheta, pediu-me que o acompanhasse
até à Azinhaga. Contrariado, tanto mais que já conhecia o andamento dele, achei
não ter outra saída. E lá fomos os dois, lado a lado, pedalando brandamente até
mesmo à porta da sua casa, onde lhe agradeci ter ido fazer a consulta e tomei
outra velocidade até aos Riachos.
Descoberta, aí, a empresa distribuidora de peixe que fabricava o
gelo, e dito ao que ia, fui ali muito bem atendido. Há muita coisa que esquece,
ao fim de tanto tempo, e esta foi uma delas, mas a impressão que em mim perdura
é que o gelo me foi oferecido pelos operários da fábrica.
Regressado ao Pombalinho, foi o gelo aplicado ao meu pai, segundo
as indicações do Dr. Rasteiro, e passados dois ou três dias já ele andava outra
vez no campo, de enxada ou de qualquer outra ferramenta nas mãos, porque dia
perdido significava o défice familiar acrescido.
Estranho, para mim, é que Augusto de Souto Barreiros não se refira
a este Dr. Rasteiro na sua obra “Azinhaga – Livro de Horas”, mesmo não sendo
ele natural de lá, coisa que o seu sotaque dava perfeitamente para perceber.
Nem mesmo ao referir-se aos dois filhos, que, esses sim, nasceram na Azinhaga e
foram, segundo o Augusto Barreiros, igualmente médicos, tendo, por conseguinte,
seguido ambos a profissão do pai, faz qualquer referência à sua paternidade.
E assim como não faz referência ao Dr. Rasteiro, também não se
refere, pelo menos enquanto médico, ao Dr. Acácio, que foi quem, no exercício
da medicina na Azinhaga, precedeu o Dr. Rasteiro. Eu conheci-o, já velhote,
deslocando-se a visitar os doentes na sua caleche conduzida pelo Sr. Anselmo.
Dizia-se deste Dr. Acácio que ele não evitava minimamente, quando
apoquentado por flatulência, expelir os seus gases ruidosamente, ou seja,
peidava-se, estivesse onde estivesse. No Pombalinho dizia-se que isso tinha
acontecido uma vez quando ele estava a consultar uma das filhas da D. Amélia
Barreiros, por sinal minha vizinha e avó paterna do Augusto de Souto Barreiros.
E acrescentava-se que a resposta dele a quem quer que alguma vez se mostrasse
espantado perante tal comportamento, era que não ia deixar estragar uma
caldeirada de tripas por causa de um dedal de vento.
Menciona o Augusto de Souto Barreiros, a certa altura da sua obra
(pág. 44), um Dr. Acácio Borges Pereira da Silva, mas apenas por este ter sido
provedor, durante dois mandatos, da Santa Casa da Misericórdia da Azinhaga.
Fá-lo ao enunciar uma lista de provedores da mesma entre 1870 e a sua extinção,
o que terá ocorrido por volta de 1950. Presumo que se trate do mesmo Dr.
Acácio, nada me permitindo, todavia, dá-lo como certo.
Voltemos ao meu pai.
Segundo o seu Registo de Nascimento, o meu pai nasceu em 5 de
Setembro de 1900, na Quinta da Melhorada, como já disse. Porém, o que sempre
lhe ouvi dizer era que fazia anos a 6 de Setembro.
Filho mais velho de Afonso dos Santos e de Maria Cecília (conforme
consta no Registo de Nascimento do meu pai) ou Maria da Conceição (como consta
no meu), ambos nascidos na freguesia de Casével, também do Concelho de
Santarém, creio que o meu pai, com a mãe e os irmãos, terão deixado a Melhorada
devido ao falecimento do meu avô, pois deixavam, assim, de ter direito a casa,
e se mudaram então para o Pombalinho.
A propósito de Casével, terra, por conseguinte, dos meus
ascendentes paternos, alguma vez ouvi o meu pai dizer que ainda éramos parentes
do General Humberto Delgado. Ora, Humberto Delgado é natural de Boquilobo, que
é terra vizinha de Casével, embora se trate de povoações pertencentes a
Concelhos diferentes: Casével ao Concelho de Santarém; Boquilobo ao Concelho de
Torres Novas. Terá tal afirmação do meu pai algum fundamento?
Julgo que, ao sair da Melhorada, o meu pai ainda não tinha ido
para a tropa, mas não deveria estar muito longe disso. A fotografia mais antiga
que dele tenho foi tirada quando ele cumpria o serviço militar. É uma daquelas
fotografias de estúdio, em pose. Uma fotografia colorida, coisa que, naquele
tempo, só podia basear-se ainda, certamente, na invenção dos irmãos Lumière, em
1904, com a utilização de placas de vidro, pois que se passaram então mais de
30 anos até ao aparecimento da película colorida.
Arrimado a um móvel
florido e com mais flores, todas artificiais, suponho, por detrás, em vasos e
jarras, o José Afonso, na sua farda de gala, a que não falta o distintivo dos
Serviços de Saúde (uma braçadeira), em cabelo, de relógio de pulso e a agarrar
um par de luvas, está um galã. O relógio de pulso deve ter sido emprestado por
alguém; as luvas deviam fazer parte do uniforme.
Como qualquer um, o meu pai tinha os seus amigos predilectos,
entre os quais se contavam o António da Clotilde, o António da Azinhaga, o
Augusto Anastácio (ver os capítulos “Dá alguma coisa ao necessitado?” e “Um
Gigante”) e o Francisco Mação.
O António da Clotilde (Clotilde era o nome da mãe), ou, mais
coincidente com a forma como era realmente tratado, o Tóino da Cotildes,
chamava-se de facto António Martins, mas também havia muito pouca gente que o
soubesse. Ele e a esposa, a Maria Amália, foram os meus padrinhos de baptismo e
do meu irmão, tendo os meus pais sido padrinhos, também de baptismo, e depois
de casamento, creio que de todos os seus cinco filhos: José, Ermelinda,
Edmundo, Rui e Georgina. E foram igualmente padrinhos de baptismo das duas
filhas, a Carolina e a Rosalina, do Augusto Anastácio.
O António da Azinhaga era assim conhecido no Pombalinho por ser da
Azinhaga e, certamente, deslocar-se bastante ao Pombalinho e ali ter arranjado
amigos, num tempo em que isso não era muito vulgar. É o que eu penso, agora, ao
reflectir sobre isso, porque Antónios, na Azinhaga, não haviam de faltar, como
não faltavam nem faltam em qualquer outro canto de Portugal onde haja duas ou
três centenas de homens. O seu nome era António dos Santos, não tendo, contudo,
apesar do apelido de ambos ser o mesmo, qualquer grau de parentesco com o meu
pai.
Aliás, o António da Azinhaga (vou continuar a chamar-lhe assim)
era casado com uma mulher do Pombalinho. Para que tal casamento tenha tido
lugar, será de presumir que o casal tenha deparado com algumas más vontades ao
princípio do namoro. Isto, porque as relações entre os da Azinhaga e os do Pombalinho
nem sempre haviam sido de cordialidade. Ouvi algumas vezes o meu pai, e não só,
contar que durante a infância dele dava briga certa os de um ou de outro lado
serem apanhados pela parte contrária depois de passada a “oliveira grossa”,
oliveira esta que ficava à beira da estrada que liga as duas freguesias, do
lado esquerdo no sentido Pombalinho/Azinhaga, sensivelmente a meio do caminho,
e que, por se distinguir das outras em relação à sua grossura (daí o epíteto,
naturalmente) ali serviu sempre como ponto de referência não só para a então
livre deambulação de pombalinhenses e azinhaguenses, como para qualquer outra
casual circunstância. E só por isso devia ter sido poupada à razia dada às
oliveiras na região.
No meu tempo de jovem tais hostilidades já haviam desaparecido, se
de facto alguma vez existiram. Não é de pôr-se de parte que houvesse algum
exagero nessa afirmação. Mas a resistência a que rapazes da Azinhaga viessem
namorar raparigas ao Pombalinho, essa perdurava. Se o mesmo acontecia no caso
inverso, não sei. O que sei é que para os apaixonados não há barreiras
intransponíveis. E, por conseguinte, casamentos entre pombalinhenses e
azinhagueiros não faltavam. Talvez porque nesta coisa de namoros e casamentos o
que mais do que tudo sempre contou muito foi ser-se ou não de “boas famílias”.
E não deixa de contar ainda, se bem que, graças a uma muito maior independência
económica e concomitante escape a uma subordinação paternal de que uma grande
parte dos jovens hoje goza, não tanto.
Como teria sido no caso do António da Azinhaga e da mulher: um
amor que se sobrepôs a todas as contrariedades e resistências, ou um amor
facilitado pelo aval das “boas famílias”? O nome dela, que tantas vezes
pronunciei, é um dos tantos que, com muita pena minha, já se me esvaiu da
memória. Lembro-me, no entanto, que era irmã de um Marcelino casado com a Júlia
Cavaco, filha do Manuel Cavaco, da Estalagem do Pocinho. Continuo a falar do
António da Azinhaga, porque, a meu ver, era uma personalidade muito interessante.
Teve a infância, a adolescência e a entrada na idade adulta comuns aos
camponeses - vida de pobretana, por conseguinte -, o que me permito afirmar por
ele e o meu pai terem sido companheiros e amigos já por esses tempos. Mas
depois tornou-se negociante e eu conheci-o já a residir no Entroncamento, com a
família (a mulher e três filhos, uma rapariga e dois rapazes) e com um hóspede
(um jovem barbeiro da Azinhaga a trabalhar no Entroncamento, que acabou casando
com a filha).
O António da Azinhaga tinha uma grande horta lá no Entroncamento,
perto de casa. E o meu pai ia passar grandes temporadas a tratar dessa horta,
recebendo pelo trabalho o salário combinado e habitando com eles, o que quer
dizer com comida e dormida, como se de mais um familiar se tratasse.
Fora isso, o meu pai decidia, uma vez por outra, ir até ao
Entroncamento, para visitar os amigos. O dia escolhido tinha de ser,
logicamente, um Domingo ou um Feriado em que não houvesse trabalho para fazer
nas searas ou nas eiras. E como havia uma feira mensal no Entroncamento, em
determinado Domingo do mês (o último, salvo erro), o dia escolhido era
normalmente um desses Domingos de feira. O percurso, de cerca de 17
quilómetros, por estrada e por atalhos, era feito a pé, para um lado e para o outro.
Naquele tempo, o Pombalinho não era ainda servido por nenhum serviço de
transporte colectivo. Mesmo que fosse, o percurso não deixaria por isso de ser
feito a pé, certamente. Porque, havendo ligação ferroviária de Mato Miranda, a
cerca de quilómetro e meio do Pombalinho, ao Entroncamento, local da principal
oficina ferroviária do país, a viagem continuava sendo feita a pé. Julgo,
porém, que a causa talvez nem sempre fosse a pobreza reinante. Talvez fosse
também (em relação ao comboio, claro) uma questão de horários.
Algumas vezes eu fiz essa jornada com o meu pai. Outras vezes com
o meu pai e com o meu irmão. Partíamos de madrugada. Chegávamos à Golegã já com
o dia a romper e as tascas a abrir, numa das quais emborcávamos o nosso cálice
de aguardente. Continuávamos a caminhada por estrada até um bocado para lá do
cemitério da Golegã e enveredávamos então por atalhos até ao Entroncamento,
onde nunca chegávamos sem que muito antes sentíssemos uma necessidade premente
de despejar o conteúdo clarinho e fumegante da bexiga, efeito evidente da
aguardente.
Falando do cemitério da Golegã, não pode deixar de citar-se a
singular quadra que o mesmo ostenta à entrada:
Ó tu mortal que me vês
Repara bem como estou
Eu já fui como tu és
E tu serás como sou
Chegados ao
Entroncamento, logo nos encaminhávamos para casa do António da Azinhaga, onde
chegávamos ainda bastante cedo e éramos recebidos com evidente satisfação.
Então, além dos momentos que passávamos confraternizando com aqueles amigos e
que geralmente incluía uma visita à horta, íamos à feira e passeávamos pela
vila, sempre com uma ou duas passagens pela ponte que, para encurtar caminho
entre dois lados da vila, que nasceu e cresceu à volta das instalações
ferroviárias, passava por cima das oficinas e das linhas, onde nunca faltavam
comboios em movimento, com as máquinas expelindo o seu denso fumo negro, pois
não havia ainda nenhuma linha de caminho de ferro electrificada.
Curioso é que o meu pai procurava sempre que apanhássemos com o
fumo na cara e o aspirássemos, porque, dizia ele, fazia bem aos pulmões. Ora,
como há muito se sabe, nada mais ao contrário, podendo até a inalação de fumo
levar à morte, por intoxicação.
Mais curioso ainda é, no entanto, que ao estar eu a escrever isto,
em princípio de Novembro de 2005, deparo, na “Visão” de 25 de Agosto do mesmo
ano, com um artigo com os seguintes título e subtítulo:
Monóxido de carbono que trata
Miguel Soares chegou a uma conclusão impensável: o gás tóxico dos
tubos de escape dos carros pode combater o entupimento das artérias
E vale com certeza a pena transcrever a parte inicial do artigo, até
para sabermos que este Miguel Soares não é um qualquer. Ei-la:
Por mais estranho que pareça, esclerose múltipla, malária,
rejeição em transplantes e arterosclerose têm um factor em comum: a resposta
inflamatória, ou seja, a forma como o corpo reage a um microorganismo ou a uma
lesão de um tecido. «Tem-se a ideia de que é uma coisa má, mas é essencial à
vida», explica o investigador Miguel Soares. A arterosclerose pode ser vista
como um processo inflamatório que acontece nas paredes dos vasos sanguíneos, à
conta da acumulação de gordura. Num artigo publicado na revista Nature,
enquanto ainda trabalhava na Escola Médica de Harvard, em Boston, Miguel Soares
demonstrou que o monóxido de carbono (sim, o gás tóxico libertado pelos tubos
de escape dos carros) é capaz de reverter os efeitos da doença. «Neste momento,
há nove patentes referentes aos direitos de exploração do monóxido de carbono
como substância terapêutica. Ora bem, não sei se estarei enganado, mas julgo
que o fumo libertado pelas máquinas movidas a carvão contém igualmente monóxido
de carbono. E, assim sendo, será caso para dizer que, afinal, o meu pai já
tinha descoberto as funções terapêuticas do monóxido de carbono nos longínquos
anos da década de 40 do Século XX... Ah grande Zé Afonso!!!...
Foi nas andanças com o meu pai pelo Entroncamento que a primeira
vez ouvi falar de relações sexuais entre dois irmãos. Numa relação incestuosa,
portanto. Note-se, contudo, que na altura esse era um termo fora do nosso
vocabulário. E para o meu pai me contar e eu entender o que se passava, nem foi
necessário. Tratava-se de um casal já com uma filha e estabelecido com
mercearia e vinhos, se a memória me não falha, não muito longe da residência do
António da Azinhaga. Interessante é que, para os tão arreigados preconceitos da
época, sobretudo para os relacionados com a sexualidade (haverá grande
diferença entre o que era e o que é?), o casal e a filha viviam sem
sobressaltos provocados por hipotéticos puritanos ofendidos com a sua relação
fora dos cânones éticos e religiosos.
O António da Azinhaga tornara-se então negociante, como já foi
referido. Foi, de resto, em sua casa que eu pela primeira vez vi um telefone e
uma máquina de escrever, instrumentos sem dúvida necessários, se não mesmo
indispensáveis, ao seu modo de vida. Não sei em que é que ele negociava,
exactamente. Possivelmente em tudo que se lhe deparasse que desse para comprar
e vender com lucro, especialmente se lho vendessem fiado. De dois negócios
feitos por ele lembro-me eu, um de ouvir contar, o outro de o ter conhecido
directamente. O de “ouvir contar” tratou-se de uma compra a crédito, ao João
d’Assumpção Coimbra. O que se contava era que a certa altura o Coimbra,
comentando com alguém uma venda de azeite feita ao António da Azinhaga, azeite esse
de que nunca mais recebera o respectivo valor, dizia: -Ah... ele não mo pagou,
mas eu vendi-lho bem vendido! Por outras coisas que se contavam do Coimbra, não
será muito de estranhar que também tenha acontecido essa.
O negócio que eu lhe conheci directamente foi a compra da
azeitona, ainda na árvore mas pronta a varejar, de um olival pegado à horta do
Romeu, logo a seguir ao Casal Centeio. E o conhecimento directo veio-me do
facto de eu próprio (então com 14 ou 15 anos ou por aí perto), o meu pai e o meu
irmão termos andado, juntamente com um rancho de gaibéus, na colheita dessa
azeitona, coisa que deve ter durado para aí duas ou três semanas.
Pode não ter nada a ver, mas quando reflicto sobre isso penso que
foi daí, do convívio com esses gaibéus, que mais comecei a dar conta das
diferenças nos usos e nos costumes de umas terras para outras. E a diferença,
neste caso, era que enquanto certos termos de calão que no Pombalinho não
podiam ser ditos por homens em frente de mulheres sem que tal fosse tomado por
ofensa grave, entre os componentes daquele rancho, parte dos quais familiares
muito próximos entre si (pais com seus filhos e filhas ainda solteiros), valia
tudo, sem o mínimo constrangimento.
No Pombalinho, até “porra” era obscenidade grossa e, por isso, me
valeu uma vez uma valente bofetada da minha mãe. Estávamos no inverno e em
casa, num dia à noite. Eu ia a subir para a lareira, para me aquecer, como era
hábito nas casas dos pobres. Ao subir, porém, descuidei-me e dei uma cabeçada
na trave em que assentava a parede da chaminé. E aí vai “porra!”, exprimindo,
em voz alta e bom som, o meu sentimento de dor. Ora, a minha mãe estava mesmo
ali, e não gostou.
Além da visita à feira, o meu pai não deixava nunca de visitar o
Jardim da vila, com cujo jardineiro acabou por familiarizar-se. Ficavam sempre
os dois a conversar sobre flores um bom bocado e o meu pai só de lá saía sem
alguma flor (pé transplantável, bolbo, sementes, etc.) para o seu jardim se a
visita calhasse numa altura em que não houvesse mesmo nada que para tal se
prestasse.
O mesmo acontecia, aliás, nas suas idas a Santarém por ocasião da
feira anual que ali se realizava, já não sei se em Setembro se em Outubro,
algumas das quais fizemos também juntos, ele, eu e o meu irmão, e igualmente a
pé, pelo menos para lá. No regresso, creio que uma vez ou outra fizemos a
viagem de comboio. Nunca ficava por fazer uma visita ao jardim das Portas de
Sol e uma conversa do meu pai com o respectivo jardineiro. A não ser que ele lá
não estivesse na altura. Mas se estivesse, o mais certo era o meu pai não sair
das Portas do Sol também sem alguma coisa para o seu jardim. Como já referi ao
falar dos quintais, as flores eram sem dúvida o grande hobby do meu pai.
Nos quintais das casas em que morámos não ficava um bocadinho que
pudesse ser aproveitado para isso em que o meu pai não plantasse flores ou não
colocasse vasos, tanto num caso como no outro cultivando espécies das mais
variadas. Vasos, havia-os pelo chão e em armações de madeira com várias
prateleiras, tudo por ele preparado em função do espaço. Até uma flor aérea o
meu pai teve. Os seus ramos eram muito parecidos com os de um craveiro e estava
colocada num bocado de rede metálica, com as raízes expostas ao ar. Precisava
era de ser regada. Nunca vi outra em mais parte nenhuma.
Virá a propósito dizer que morámos em 5 casas. As duas primeiras,
na Rua Carolina Infante da Câmara, eram do Manuel Mateiro e depois dos filhos:
a Justa, a Verónica, a Francisca (Xica) e o Pedro. A primeira, pegada à
habitação dos donos e com um quintal comum, foi para onde os meus pais foram
morar quando se casaram e onde nascemos o meu irmão e eu. A segunda era pegada
à primeira, mas fazia parte de um outro corpo arquitectónico. A mudança
efectuou-se por conveniência dos proprietários, mas mais tarde voltámos à
procedência. E ali ficámos até que os donos precisaram da casa. Tudo processado
em boa harmonia (era impossível não se processar tudo em boa harmonia com
aquela família), tivemos então de sair dali, tinha eu 16 ou 17 anos. Como havia
uma certa urgência por parte dos proprietários e não era fácil encontrar casa
para arrendar naquela altura, fomos para a primeira que apareceu, no Pátio do
Neto e propriedade do António Abegão. Porém, por a casa ser pequena e nem
quintal ter, ficámos ali pouco tempo, tendo então mudado para uma casa do
Manuel Sacola, na Rua 1.º de Dezembro (Rua de Baixo), onde ficámos até eu ir
para a tropa. E estava eu ainda na tropa quando os meus pais se mudaram para
uma casa do meus tios Manuel Afonso (Manuel dos Santos) e Maria Calada, na Rua
de Santo António.
Na primeira habitação, todo o quintal comum, que tinha um poço, um
tanque para lavagem de roupa, uma pereira e, salvo erro, uma parreira, era
ajardinado pelo meu pai. Contíguo ao quintal, havia um forno e espaço para os
galináceos, para os coelhos e para uma cabra, espaço esse que, embora protegido
da bicharada daninha (ginetos e toirões) por rede metálica, não se livrou de,
duas ou três vezes, que me lembre, ter sido invadido por essa bicharada, que
sempre deixava estragos.
O corpo de que a segunda habitação fazia parte ligava-se - pela
frente e por uma dupla varanda sem resguardo (uma vez desmandei-me dela abaixo,
mas a amachucadela não foi grande) e com degraus a meio, para acesso aos dois
lados - a uma construção igual, pelo exterior (eram, digamos, casas geminadas),
mas que, no interior, não tinha qualquer divisão e servia de celeiro. E foi
nesse celeiro, precisamente, que assisti pela primeira vez, era ainda bastante
miúdo, a ensaios de um rancho folclórico, cujo ensaiador era o meu pai.
Não sei se já andaria na escola, para a qual entrei em 7 de
Outubro de 1937 (7 de Outubro era a data, naquele tempo, da abertura do ano
lectivo). Tendo eu nascido em 10 de Novembro de 1929, faltavam-me, então,
apenas um mês e 3 dias para fazer os 8 anos. E não entrara no ano anterior
porque, nesse tempo, a entrada para a escola só era autorizada com os 7 anos já
feitos. Apesar de no ano anterior o meu pai ter antes falado com a professora,
que era a Maria José de Moura Amorim, no sentido de ela me deixar entrar, visto
faltar tão pouco tempo para eu fazer os 7 anos, e de ela lhe ter dado uma
negativa, o meu pai mesmo assim me mandara para a escola, de bolsa às costas, a
ver se pegava. Mas a professora não foi na cantiga. Mal me topou, perguntou-me
o que é que estava ali a fazer. Eu nem sei se lhe respondi alguma coisa, se
não; o que sei é que ela me mandou embora.
Pelas traseiras dessas casas geminadas e do largo portão de ferro
que às mesmas se seguia e dava aceso às traseiras, situavam-se o curral dos
bois (o Manuel Mateiro tinha uma junta de bois), o palheiro, uma pequena
moradia, também alugada (habitavam nela o José Chicharro, com a mulher, a
senhora Angélica, e um filho, também José e também Chicharro), e grandes
espaços, em parte aproveitados para estrumeira e para as pocilgas dos porcos
dos inquilinos.
Havia ainda um bocado de terreno, lá para trás do curral e do palheiro,
que era cultivado pelo meu pai. Dadas as suas diminutas dimensões, nem será
muito apropriado chamar-lhe horta. Plantavam-se ali umas couves, uns
tomateiros, uns feijões verdes, tudo em pequena quantidade. Mas foi ali também,
talvez devido ao secretismo de que devem revestir-se as experiências
científicas, que o meu pai, enxertando hastes de craveiro em pés de couve,
andou a ensaiar a criação de craveiros que dessem cravos verdes. Não resultou,
mas, pronto... de falta de espírito científico é que não poderão acusá-lo...
A terceira habitação, a do Pátio do Neto, era, como já referi,
muito pequena e nem espaço próprio tinha onde o meu pai pudesse dedicar-se ao
seu tão apaixonado cultivo de flores. Por isso, como também já referi, lá
ficámos muito pouco tempo. Já a quarta, na Rua de Baixo, além de ter as
dimensões mais comuns nas casas de duas divisões apenas (cozinha e casa de
fora), tinha nas suas traseiras um poço e espaço para horta e para o meu pai se
dedicar à vontade às suas flores. E também tinha forno, logo à saída da
cozinha. Não sei por que é que os meus pais se mudaram dessa casa, pois me
encontrava então a cumprir o serviço militar, mas suponho que terá sido também
por os donos, o Manuel Sacola e a mulher, a senhora Luísa, terem necessitado
dela.
E dali se mudaram, então, para a Rua de Santo António, para uma
casa dos meus tios Manuel Afonso e Maria Calada, casa esta com quatro divisões,
pois dispunha de dois pequenos quartos, um anexo à cozinha e outro à casa de
fora, este com uma janela para a rua. O espaço ocupado por toda a habitação não
era, porém, muito diferente do comum, o que significa que o espaço dos quartos
fora “roubado” à cozinha e à casa de fora. O facto de dispor dos dois quartos
não deixava, contudo, de a tornar uma habitação melhorada.
Casa
da Rua de Santo António, com a minha mãe à porta e com a frontaria engalanada
para a passagem de uma procissão.
Também aqui havia um
poço, logo à saída da cozinha, e um grande quintal com uma saída para a Rua 1.º
de Dezembro. Não faltava, assim, terra para horta e para jardim. Na horta,
lembro-me eu de o meu pai ter experimentado plantar batata doce, e também me
lembro que o resultado foi negativo. E foi aí que os meus pais moraram até aos
princípios de 1978, quando uma grande cheia deitou a casa a baixo, deixando-a
inabitável, o mesmo tendo acontecido a mais três ou quatro.
Eu tinha estado no Pombalinho, de férias, em Setembro e Outubro de
1977. Havia então comprado um álbum em que colocara todas as fotografias que os
meus pais tinham a granel pelas gavetas, algumas delas de grande interesse
documental, especialmente em relação aos trajes, como, por exemplo, o uso da
jaqueta, então já em desuso. Para além, naturalmente, do valor estimativo de
todas elas.
A inundação da Rua de Santo António dera-se repentinamente e
durante a noite, creio eu, com a água vinda em força do lado do campo da
Golegã, depois de galgado o Dique dos Vinte. Não houve, assim, tempo para se
salvar sequer o que mais se desejasse salvar. E lá se foi também o álbum ao
molho, durante horas e horas, nada ou muito pouco dele se tendo podido
aproveitar. E não havendo, então, no Pombalinho, casas para arrendar, foram os
meus pais viver com o meu irmão e a minha cunhada, no Laranjeiro.
Sei, por uma sua certidão de nascimento, que os meus pais casaram
no Reguengo do Alviela, freguesia de São Vicente do Paul, de onde a minha mãe
era natural, em 14 de Maio de 1927. E sei que o meu irmão nasceu em 28 de Julho
do mesmo ano. Por onde se vê que, caso o meu irmão não tenha tido um nascimento
prematuro (os nascimentos aos 7 meses de gestação não eram invulgares), a minha
mãe já ia grávida de 7 meses quando do casamento. Nascida a 10 de Junho de
1903, tinha então 24 anos. E o meu pai quase 27. Passando portanto um
poucochinho já a média das idades com que as pessoas do seu escalão social e
por aqueles lados casavam naquele tempo. E há que ter em conta que uma
gravidez, ou mesmo o conhecimento de que os namorados teriam muito simplesmente
chegado a vias de facto no que diz respeito a relações sexuais (casos raros, no
Pombalinho e no Reguengo), eram factores que apressavam o casamento.
Normalmente, isso constituía, de resto, um transtorno para os pais dos noivos,
a maioria dos quais muito pobres, porque a criação das condições para a boda
requeria o seu tempo de preparação, motivo pelo qual os casamentos eram sempre
marcados com alguns meses de antecedência, os meses necessários para, pelo
menos, se criar um carneiro. Só para o casamento de filhos de pais extremamente
pobres ou em período de dificuldades acrescidas não haveria a matança de um
carneiro, por parte de cada família, para a boda. De qualquer maneira, quase
ninguém dispunha de meios para comprar um carneiro na altura em que precisasse
dele. O recurso era comprar um cordeiro e criá-lo. E era o que se fazia.
Os meus pais casaram então em 14 de Maio de 1927. Nesse mesmo ano,
em 28 de Julho, nasceu o meu irmão, a que foi dado o nome completo de António
Afonso dos Santos, e em 10 de Novembro de 1929 nasci eu, Guilherme Afonso dos
Santos. O que quer dizer que o meu pai tinha 29 anos quando eu nasci, e a minha
mãe 26.
Como já vimos, o meu pai regressou então da tropa a saber dar
injecções. E com certeza a saber tratar de feridas, também. Mas isso,
normalmente cada um tratava das suas. E até lá para 1944 ou 1945 não houve mais
ninguém no Pombalinho que soubesse dar injecções. Foi até o Abel Júlio
(pedreiro, e mais tarde meu cunhado) e o Veríssimo Duarte (barbeiro) terem
igualmente regressado do serviço militar a sabê-las dar. Mas nem por isso o meu
pai deixou alguma vez de ter os seus “clientes”. Quanto mais não fosse, por uma
razão muito simples: o meu pai nunca cobrou nada a ninguém pelas injecções que
dava, ao passo que o Veríssimo cobrava qualquer coisa. O Abel, não me recordo
se cobrava alguma coisa.
De facto, o meu pai nunca levou nada a ninguém pelas injecções que
deu. E muitas vezes isso exigia-lhe grande abnegação. As injecções eram às
meias dúzias e às dúzias e tinham, geralmente, que ser dadas em dias seguidos.
Ora, o meu pai trabalhava de sol a sol, de segunda-feira a sábado. As
injecções, portanto, excepto ao Domingo, tinha que dá-las depois de, ao
sol-posto, largar o trabalho. Fosse qual fosse a estação do ano, e no Verão os
dias em Portugal chegam a ter, de sol a sol, 15 horas. Se o doente podia andar,
vinha ele a minha casa, dando o meu pai aí a injecção, depois de ferver a
seringa e a agulha na caixinha metálica que tinha própria para isso e de passar
um bocado de algodão embebido em álcool na parte do braço ou da nádega onde ia
espetar a agulha. Se o doente estava acamado, tinha o meu pai que ir, com o seu
estojo, a casa dele. Quando o doente residia na aldeia, o esforço exigido ao
meu pai não era grande, visto tratar-se de uma povoação de casario aglomerado.
Embora fosse raro, acontecia, porém, uma vez por outra, o doente morar pelos
arredores. Caso dos pescadores, por exemplo, na margem do Tejo, do lado do
Pombalinho (margem direita), nada menos do que a cerca de dois quilómetros de
distância. E de um pescador me lembro eu a quem o meu pai andou a dar injecções
deslocando-se a casa dele, à borda do Tejo: o António Lobo. Uma vez, pelo
menos, teria eu 7 ou 8 anos, acompanhei o meu pai a casa do pescador. Passado
algum tempo, ia eu a sair de casa para a brincadeira, vejo o António Lobo a
chegar com um grande peixe. Perguntou-me, não sei se pelo meu pai se pela minha
mãe. Voltei atrás, para ir chamar quem quer que estava em casa, e fiquei depois
a assistir à oferta daquele peixe enorme como agradecimento por o meu pai lhe
ter andado a dar as injecções.
Com efeito, o meu pai nunca cobrou nada a ninguém pelas injecções
que deu. Acontece, porém, que as pessoas, e os pobres talvez mais que os
outros, gostam de manifestar o seu reconhecimento a quem lhes faz algum bem,
sobretudo se desinteressadamente. Daí que, passado mais ou menos tempo sobre
cada dose de injecções terminada, o próprio “injectado” ou alguém da família
viesse bater à porta da minha casa com qualquer coisa nas mãos (um frango ou
uma galinha, um coelho ou uma dúzia de ovos...), como forma de agradecimento.
Além disso, e ainda pelo mesmo motivo, não faltava nunca, ao
Domingo, na “Praça” (ver capítulo com este titulo), quem quisesse pagar um copo
ao José Afonso.
Não sei se por isso se por outra coisa, a
verdade é que, a partir de certa altura, aos Domingos, depois da “Praça”, o meu
pai começou a chegar a casa quase sempre com um grão na asa. Porém, muitas
vezes se seguia a semana toda sem sequer molhar o bico. Ia para casa ao
regressar do trabalho e não saía mais, a não ser para ir dar alguma injecção,
após o que também regressava logo a casa.
Mas houve um Domingo em que quem tinha um
grão na asa era eu. Um Domingo à tarde em que estava sozinho em casa, tinha
18/19 anos, e em que chegou uma senhora a quem o meu pai andava a dar
injecções. E o que havia então de se me ter metido na cabeça? Dar eu a injecção
à senhora, nem mais nem menos. Disse-lhe então que o meu pai não estava, mas
que eu também sabia dar injecções, pelo que podia dar-lhe eu a sua injecção.
E não é que a senhora aceitou?!... Pois
bem, foi só pôr-me a fazer o que tantas vezes vira o meu pai fazer: pegar na
caixinha metálica, enchê-la de água, meter nela a seringa e a agulha e pôr tudo
ao lume. E a seguir fiz o resto: ensopei um bocado de algodão em álcool,
esfreguei-lho no braço, onde era dada a injecção, preparei a seringa com o
líquido da ampola... enfim, tudo como devia ser. E assim dei, na perfeição, a
minha primeira e única injecção. O que o meu pai disse depois, não faço já a
mínima ideia.
Conhecido na aldeia também como jardineiro
emérito, muitas vezes os patrões para quem o meu pai andasse a trabalhar o
mandavam tratar dos seus jardins. E também tratava do jardim dum senhora que
vivia no Pombalinho, sozinha, numa casa logo à entrada da Rua Hilário José
Barreiros, do lado esquerdo. Aliás, nessa rua só havia casas de habitação do
lado direito. Residia aí, a senhora, mas o seu jardim ficava nas traseiras dum
edifício então desabitado existente na Rua Barão de Almeirim, entre a habitação
do Manuel Cardoso, que tinha um talho, e a propriedade, com duas moradias, do
Domingos Ferrador. A habitação e o talho do Cardoso vieram a constituir o
espaço ocupado pelo Café do Francisco Minderico e o referido edifício a sua
habitação e da família.
Não sei qual era o nome da senhora. E
creio que nunca o soube. Era referida por todos como “a Barbuda”, não lhe tendo
conhecido nunca qualquer familiar. Quando do seu falecimento, não faço ideia
nenhuma de quem lhe terá tratado do funeral. A Junta de Freguesia? Alguém a
quem tivesse deixado os seus bens na condição de se incumbir disso?
Creio é que a casa ficou acessível a quem
quisesse entrar, pois me lembro de ter estado também junto do seu cadáver.
Disso... e de ter aproveitado a ocasião para surripiar um livro duma arca. Foi
com certeza um dos primeiros romances que li, se não o primeiro, e que conservo
na minha biblioteca. Reli-o muitíssimos anos mais tarde e achei-o um magnífico
romance policial. Trata-se de “A Queda de César”, de John R. Carling, em 2.ª
edição (de 1926) da Parceria António Maria Pereira e com tradução de Câmara
Lima.
Digo que não sei se esse terá ou não sido
o primeiro romance que li, porque, logo que eu e o meu irmão aprendemos a ler,
nas noites de Inverno líamos à lareira, revezando-nos com o meu pai, romances
que, se me não engano, o meu pai levava, pelo menos em parte, da Casa do Povo,
na sua qualidade de Secretário da Direcção, cargo que desempenhou durante
alguns anos.
Vem a propósito dizer agora que o meu pai
lia com bastante desenvoltura letra impressa, mas não sabia escrever nem ler
letra manuscrita. De escrita, fazia apenas o seu nome, o que lhe dava para
assinar documentos, como o cartão de Secretário da Direcção da Casa do Povo,
que me lembro de ter visto, e o Bilhete de Identidade, que a seguir reproduzo.
Isso se deveu ao gosto
de ensinar do Júlio da Silva Freire, com certeza uma das mais ilustres figuras
que o Pombalinho já teve, e ao facto de ter aprendido já a atingir a idade
adulta. Eu ainda o conheci o Júlio da Silva Freire. E lembro-me bem de dois
episódios da sua vida.
Segundo o meu pai contava, fez parte de um grupo de camponeses a
que o Júlio Freire, nome abreviado pelo qual era mais conhecido, andou a dar
aulas, à noite, gratuitamente. Penso que isso terá ocorrido apenas durante as
noites maiores, já que durante as noites mais pequenas os camponeses,
trabalhando de sol-a-sol, chegavam a casa exaustos e com pouco tempo para
recuperar forças para um novo dia de trabalho, o que muito provavelmente os
teria levado a dar as aulas por terminadas. Foi, de resto, o que aconteceu
comigo numa altura em que pensei aprender música e a tocar um instrumento
musical. Tinha então 18 anos.
O Augusto Diniz, que era do Pombalinho e tocava saxofone na banda
da Azinhaga e em bailes, prontificou-se a ensinar-me a solfejar. Ainda me deu
algumas lições, em sua casa, e ainda fui uma vez ou duas aos ensaios da banda,
na Azinhaga. Mas aconteceu isso: chegaram os dias grandes e as noites pequenas,
dias em que, muitas vezes, ao chegar a casa depois do dia de trabalho, me
atirava para a cama e ficaria a dormir até à hora de levantar no dia seguinte se
a minha mãe não me acordasse para cear. Acabei por desistir da música, embora
tivesse bicicleta (fui, diga-se de passagem, o primeiro trabalhador rural a ter
bicicleta, no Pombalinho) e se me tornasse mais fácil, por isso, deslocar-me à
Azinhaga para os ensaios. Chego, todavia, a pensar que a minha desistência se
terá devido mais à minha falta de entusiasmo pela aprendizagem da música, em
que o instrumento da minha preferência era o clarinete, do que a qualquer outra
coisa.
Pelo que ouvia ao meu pai, tive conhecimento de que houve um tempo
em que ele se juntava, nos serões de inverno, com outras pessoas, em casa de
uma delas, a ler romances, em livro e publicados nos jornais em folhetim (em “O
Século”, por exemplo, então um diário afecto ao Estado Novo), que iam
arranjando por empréstimo.
Uma das casas em que me lembro de ouvir dizer ao meu pai que havia
participado nesses serões de leitura foi a do senhor Pedro e da senhora
Preciosa, na Rua Joaquim Gonçalves Ferreira, pegada à fonte com o mesmo nome.
Ao senhor Pedro conheci-o sempre como o maioral dos bois da família
Menezes. E foi assim que pela primeira vez ouvi falar de “O Amor de
Perdição”, de Camilo Castelo Branco; de “A Rosa do Adro”, de Manuel Faria
Rodrigues; de “As Pupilas do Senhor Reitor”, de Júlio Dinis; de “Camilo
Alcoforado”, de Campos Monteiro; de “O Conde de Monte Cristo”, de Alexandre
Dumas (pai); de “A Dama das Camélias”, de Alexandre Dumas (filho), uma parte
dos quais, se não todos, também lemos em casa, á lareira, nos serões de inverno.
O meu pai gostava, pois, de ler, como se vê. E isso o levou até a
formar uma pequenina biblioteca, que cabia numa simples prateleira que ele
mandou fazer e colocou numa parede da cozinha, com os livros que estavam ao
alcance da sua bolsa: as histórias infanto-juvenis que se vendiam nas feiras e
os versos que, além de se encontrarem também nas feiras, eram igualmente
vendidos de terra em terra por cegos e seus acompanhantes, normalmente um
tocando acordeão e o outro cantando as letras dos referidos versos. Das
histórias infanto-juvenis lembro-me de “O Menino da Mata e Seu Cão Piloto”,
cuja personagem principal se chamava Guilherme, um meu homónimo, por
conseguinte, o que me fazia, naturalmente, ter-lhe uma especial afeição, “O
João Ratão”, “Pedro Cem”, “Branca de Neve e os Sete Anões”. “O Capuchinho
Vermelho”, “A Gata Borralheira”, etc..
Gostava de ler... e acho que ao meu pai devo, pelo menos em parte,
o ter-se-me esse gosto pegado, também.
E ambos o devemos, por outro lado, ao Júlio da Silva Freire. Se este
não tivesse tido a benemérita disposição de ensinar camponeses a ler, e não
tivesse ele próprio o gosto da leitura e o dom de o transmitir àqueles com quem
convivia, eu não teria por certo, hoje, tanto que contar. E que ele tinha o dom
de transmitir esse gosto aos que lhe eram mais próximos demonstra-o, sem
dúvida, o gosto que pela leitura era manifesto nos seus filhos, o Júlio da
Conceição Freire e a Maria Generosa da Conceição Freire, e nos seus netos, com
um dos quais, o filho mais novo da Maria Generosa, Júlio da Conceição Silva,
tive uma relação muito próxima, acho que fortalecida precisamente devido às
nossas afinidades culturais. Quando ambos trabalhávamos (e morávamos) em
Lisboa, eu como guarda da PSP e ele como barbeiro, visitávamo-mos de vez em
quando um ao outro e fazíamos passeios juntos, normalmente acompanhados das
mulheres e dos filhos. Lembro-me de termos ido uma vez, pelo menos, à praia
(fui eu até que consegui pô-lo a nadar) e de termos visitado juntos o Museu
Etnográfico Leite de Vasconcelos, no Mosteiro dos Jerónimos. Depois de eu ter
partido para Moçambique, a cujo embarque ele esteve presente, a nossa relação
manteve-se através de correspondência durante alguns anos.
À minha partida para Moçambique, no Cais da Rocha, em 10/10/1959.
António Afonso, Elvira Moreira Silveira, José António, Violante Cruz, Preciosa
Narciso da Guia, Júlio da Conceição Silva, Guilherme Afonso, Ant. Afonso Cruz
dos Santos
Torno ao meu pai, para
evocar a sua faceta de ensaiador de ranchos folclóricos, a que já me referi lá
para trás, ao falar do celeiro onde o vi ensaiar o primeiro e em que já tinha
como adjunto o Francisco de Sousa, mais conhecido por Francisco Mação, que
sempre fez parelha com o meu pai em todos os ranchos por ele ensaiados. Além do
Mação, só me lembro que também fazia parte desse primeiro rancho, como tocador
de ferrinhos, o António Cordoeiro, que sofria de ataques epilépticos e que
viria a falecer devido a um acidente de trabalho, salvo erro ao cair de um
andaime quando andava a dar serventia a pedreiros. Não sei se eu já então
estava em Moçambique, ou ainda em Portugal, não conhecendo pormenores do
acidente. Não será contudo despropositado, penso eu, relacionar tal acidente
com a ocorrência de um dos seus ataques de epilepsia, doença que deveria tornar
impeditiva a execução de certos trabalhos a quem dela sofre.
Mas a pobreza a muito obriga, sobretudo quando há filhos a que dar
de comer e vestir, que era o caso, nessa altura, do António Cordoeiro, pessoa
por quem me ficou uma grande simpatia desde o tempo dos ensaios no celeiro, era
eu miúdo. Uma simpatia que, se tal é concebível, foi ainda sempre crescendo no
nosso relacionamento posterior, inclusivamente como companheiros de trabalho
que algumas vezes fomos, e que eu pretendi exprimir no conto “O Zé Hóstia”,
nele inspirado e o primeiro do meu livro “Circuito”. Que fique claro, porém,
que o Zé Hóstia não é o António Cordoeiro. Trata-se somente da personalidade em
que me inspirei para criar o Zé Hóstia, pretendendo com isso, sobretudo,
prestar-lhe a minha homenagem. Veja-se, a propósito, a NOTA DO AUTOR em “Circuito”,
publicado na íntegra em «www.omeucircuito.blogspot.com».
Ainda sobre os ranchos folclóricos, creio que já o primeiro que o
meu pai ensaiou foi a chamada dança da roca, como nos outros dois que eu sei
ele ter ensaiado e cujo instrumento – a roca - se pode ver na fotografia
abaixo, à frente do grupo.
Este rancho, apresentado completo na fotografia seguinte e em que
ao centro da primeira fila (de cócoras) estão, por esta ordem, o meu pai, o
António Rufino (acordeonista), o Francisco Mação, o José Bacalhau e o Manuel
Rato, exibiu-se em 1955.
Entre os dois ranchos
referidos, ensaiou (na Casa do Povo, onde assisti a alguns ensaios) um outro,
teria eu 16 ou 17 anos, o que quer dizer que terá sido lá para 1946, mais ano
menos ano. Relacionado com este gosto do meu pai por danças e contradanças (ele
tinha, aliás, fama de bom dançarino), também o vi uma vez, ao ser solicitado
para o efeito, a orientar, à hora de uma das refeições (o almoço ou o jantar)
uma dança num rancho que andava na colheita da azeitona. Quando o trabalho não
era pesado e os dias eram pequenos, acontecia uma vez por outra o pessoal
aproveitar para dar uns passos de dança à hora da refeição. Dessa vez, como o
olival dava para a estrada da estação e a refeição foi passada à borda da estrada,
foi aí mesmo que se fez a dança.
E doutra vez foi mesmo na casa-de-fora da minha casa (a primeira,
aquela em que eu nasci) que se realizou, à noite, o baile duma qualquer adiafa,
para o que, a fim de arranjar espaço, foi preciso chegar os poucos móveis para
os cantos e pô-los em cima uns dos outros. Coisa, seja-me permitido dizê-lo de
passagem, que não era lá muito do agrado da minha mãe. Nem isso, nem a
dedicação do meu pai aos ensaios dos ranchos folclóricos (nunca o acompanhava).
Assim como não era do seu agrado, veja-se só, os cuidados que ele tinha com as
flores do seu jardim. Pelo menos foi a ideia que me ficou. Não sei é se essa
ideia já existia quando um dia a surpreendi a desarreigar uma roseira que o meu
pai tinha plantado encostada a uma parede, no quintal da casa da Rua de Baixo,
se nasceu nesse dia. Por ciúmes?... Só podia ser. Mas não deixava de colher
flores para meter nas duas ou três pequenas jarras que havia em casa...