Tinha eu dezassete ou
dezoito anos quando escrevi a primeira carta para um jornal. Fi-lo a convite de
um velho pedreiro chamado Francisco Carvalho, que todos tratavam directamente
por Mestre Carvalho e, indirectamente, por Carvalho Velho, para o distinguir do
filho, António Carvalho, também pedreiro, que seria por, conseguinte, o
Carvalho Novo.
Trabalhava eu então num forno de telha e de tijolo que só
funcionava no verão, por falta de instalações apropriadas para funcionar no
tempo chuvoso. Poderia designar-se por “fábrica de cerâmica”, mas era
rudimentar de mais para isso. Tanto aquele como todos os outros que havia nas
redondezas eram denominados muito simplesmente por fornos: Forno do Alviela,
esse para onde eu fui sempre trabalhar dos catorze aos dezanove anos e mais ou
menos de Abril ou Maio a Agosto ou Setembro, conforme o tempo o permitisse;
Forno de Mato Miranda, etc.
Ora, quem a primeira vez me contratou para ir trabalhar para o
forno foi precisamente o Mestre Carvalho, que era quem então o explorava, por
aluguer pago em tijolos e telhas aos seus proprietários, os latifundiários
Infantes da Câmara, de Vale de Figueira.
O Mestre Carvalho assinava "Os
Ridículos" , um
semanário humorístico editado em Lisboa que teve sempre a vida complicada pela
censura salazarista, a qual acabou mesmo por pôr-lhe fim, não sei já se por
medida censória definitiva ou se pelas dificuldades económicas criadas pelos
sucessivos períodos de suspensão, sempre crescentes, que foram sendo aplicados
ao jornal. Uma das secções de Os Ridículos era “Terra de Ninguém”, em que os
correspondentes ou assinantes, em geral assinando com o seu gentílico, davam
conta do que de pior ia pelas respectivas terras.
Pois bem, um dia o Mestre Carvalho teve a ideia de me propor que
escrevesse um artigo para aquela seccção, sobre o Pombalinho. Eu não me fiz de
rogado. E assim alinhavei as minhas primeiras palavras que saíram num jornal,
escalpelizando o facto de o Pombalinho, aldeia com cerca de mil habitantes, não
ter médico, não ter farmácia, não ter telefone nem electricidade, mas ter
catorze tavernas. Uma verdadeira “Terra de Ninguém”, de facto. Assinava com o
inevitável gentílico: Um Pombalinhense.
Por essa altura, pouco mais ou menos, tive conhecimento da
existência da Gazeta do Sul, um semanário de que gostei e de que, por isso, me
tornei assinante. Denominava-se de “semanário de cultura popular”, era editado
no Montijo e dispunha de um espaço para colaboração dos assinantes. Também não
estava muito nas graças do Estado Novo. Era, sem dúvida, um bom jornal,
atingindo em pleno os objectivos que se propunha: a cultura popular. Semana a
semana, eu lia-o com avidez.
Foi então que começou a morder-me o bichinho de ver o meu nome no
jornal, já que aí não iria usar o gentílico, como autor de alguma coisa escrita
por mim. Camponês assalariado num meio muito limitado, com a matéria do 2º Grau
da Instrução Primária (4ª classe), que completara aos onze anos, já bastante
esquecida, era-me difícil a escolha dum tema e a sua exposição, mas não me dei
por vencido. Acabei por mandar dois artigos para o jornal, muito espaçados um
do outro, que foram publicados.
Com a ida para a tropa (Serviço Militar Obrigatório) interrompi a
assinatura da Gazeta do Sul. Reateia-a depois e mantive-a até estar em
Moçambique há já cinco ou seis anos, ou seja, até á altura em que a Gazeta, com
as lutas de libertação nacional desencadeadas nas então colónias de Portugal em
África e com a proclamação de Salazar, para Angola e em força, assume
abertamente uma posição colonialista, abjurando assim da sua anterior postura
de oposição ao Estado Novo, coisa para mim inaceitável.
Não guardei esses meus primeiros escritos para jornais. Não tinha
ainda o espírito de coleccionador, por um lado, e de arquivista, a minha
autêntica vocação, creio eu, por outro, que mais tarde me cativaram. Por isso
perdi também O Mosquito, precursor dos jornais de banda desenhada em Portugal e
minha primeira assinatura de hebdomadários, tinha então catorze ou quinze anos.
Hoje, O Mosquito, que deu lugar ao Mundo de Aventuras (ou foi ao Cavaleiro
Andante?) e que eu assinei até á sua extinção, é uma relíquia para
coleccionadores de publicações de BD. Nele travei conhecimento com o mágico
Mandraque, o Capitão Cid e outros mais de que já não me lembro.
Disse acima que terá sido o bichinho a morder-me por ver o meu
nome no jornal que me teria lançado na aventura de escrever para jornais. Será
por aí certamente, que todos começam. Mas não será que subjacente a esse desejo
existirá já também a vontade de intervir quanto mais não seja no evoluir dos
acontecimentos à sua volta? Penso que sim. Sendo que esse objectivo será,
naturalmente, mais ou menos atingido consoante a capacidade e a pertinácia do
escrevente, assim como a guarida que os orgãos de informação lhe dêem ou deixem
de dar.
1 comentário:
Caro MGomes
Fui espreitar O PERFUME DA ALMA.
De encantar. Não li tudo,mas o que li encantou-me. Uma escrita quase ao segundo. Que registo esse.
Estranho não haver um comentário. Não será pelo perfume,pois cheira bem. Será da alma?
Os meus agradecimentos,pelo encantamento.
Como vê,as despedidas custam,daí,o voltar a cabeça,ainda,pelo menos,uma vez.
Enviar um comentário