quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

As Searas !


Eram searas de milho, geralmente com feijão branco e aboboreiras incorporados; searas de grão de bico e searas de feijão frade. Searas semeadas nas terras daqueles que as tinham e cultivadas, desde a primeira sachadela até à partilha da respectiva produção, nas eiras, pelas famílias constituídas por trabalhadores rurais, gente sem terra nenhuma.

Aos donos das terras, desde pequenos proprietários a latifundiários, chamávamo-los de lavradores. Latifundiários mesmo, na zona constituída pelas freguesias do Pombalinho e da Azinhaga e pelo Reguengo do Alviela, uma pequena localidade em que a minha mãe nasceu e que pertencia à freguesia de São Vicente do Paul, que fica muito mais longe que o Pombalinho, eram dois, ambos residentes em quintas situadas na freguesia da Azinhaga: o João de Assunção Coimbra, na Quinta da Melhorada, onde nasceu o meu pai e de onde se via passar os comboios, e o Manuel Tavares Veiga, na Quinta da Broa, junto à ponte sobre o rio Almonda, que passa pela Azinhaga e vai desaguar no Tejo logo ali a umas centenas de metros.

Depois de semeadas e com as plantas já a romper, as terras eram divididas em courelas iguais através de regos abertos por uma charrua e distribuídas, por sorteio, pelas mulheres casadas que, antes informadas, acorriam ao local para tirarem um papelinho numerado de um boné ou de um barrete, ficando, assim, cada uma a saber qual era a sua seara. O sorteio visava eliminar suspeitas de favoritismo, já que, numa propriedade grande, sempre havia um ou outro bocado de terra menos fértil.

Eram as mulheres casadas que tomavam conta das searas e que mais nelas trabalhavam, porque, no Pombalinho, a mulher, uma vez casada, deixava de trabalhar assalariada. Com efeito, as raparigas, logo que tivessem idade e corpo – corpo, sobretudo - para trabalharem no campo, assalariadas, era isso que passavam a fazer, assim contribuindo, daí por diante, com a sua jorna para o sempre parco orçamento familiar. Mas só até casarem. A partir daí, ponto final. Deixavam de ter de ir à praça (noutra altura veremos o que é que isto quer dizer), aos Domingos, para arranjarem patrão. Ou seja, a partir do casamento, a mulher, no Pombalinho, cuidava do marido e dos filhos, da casa e do mais que se verá. Diferentemente do que sucedia na vizinha Azinhaga, por exemplo, o que implicava, naturalmente, outras diferenças, assunto a que oportunamente voltarei, pois que a observação de usos e costumes sempre me cativou. É, de resto, do que estou já a falar e do que tratarei na maior parte destas minhas memórias.

O cultivo das searas de milho, normalmente mais do que uma por ano e por família, do mesmo ou de diferentes lavradores, obedecia aos procedimentos seguintes:
Uma vez tomada conta da courela atribuída pelo já referido sorteio, as mulheres para ali se deslocavam, cada uma para a sua seara, sempre que tivessem tempo para isso e até que a sacha terminasse. Durante os chamados dias úteis da semana, se tinham filhos em idade que já desse para aguentarem a sachadeira nas mãos, mas não ainda para trabalharem por conta de outrem (e desde que não fosse dia de irem à escola, para os que andavam na escola), lá iam os filhos também para ajudarem na tarefa de eliminar as ervas e os pés de milho considerados a mais para o bom crescimento da seara e para o tamanho das futuras maçarocas, não se tocando, porém, nos pés de feijão e de aboboreira. Ao Domingo, se calhava de haver sacha para fazer, era a família inteira que ia para a seara, até cerca das onze horas, altura então de se ir almoçar e de se preparar cada um, depois, para passar o resto do dia conforme a idade, o estatuto e as obrigações familiares.
À sacha seguia-se, algumas semanas depois, a amota, que consistia em chegar terra ao pé de cada milheiro, não sei bem para quê, mas imagino que para as plantas melhor se aguentarem direitas quando, já grandes, fossem batidas pela chuva e pelo vento. Aproveitava-se então para de novo deitar o fio da sachadeira à erva já de novo a despontar.

O empenhamento da família era o mesmo... e o mesmo era para as fases seguintes do cultivo, sujeitas algumas destas a variantes, consoante a robustez que as plantas atingissem, coisa dependente das condições atmosféricas e de serem as searas regadas ou não.
Se as plantas se tornavam robustas, caso em que, naturalmente, davam boa maçaroca (uma ou duas), proceder-se-ia ao desfolhamento e desbandeiramento. Julgo que a finalidade dessa operação era fazer com que as maçarocas ficassem mais expostas ao sol e, assim, amadurecessem mais depressa, tendo em conta que era preciso despachar todo o trabalho relativo à colheita antes que as chuvas viessem criar embaraços. Quando o procedimento era este, as folhas e as bandeiras eram dispostas em paveias que, depois de secas, dali seguiam para os palheiros e alimentavam o gado nos tempos de cheias e de secas, em que outra coisa não havia. Neste caso, ainda, as maçarocas eram depois colhidas para cestos de verga que a seguir eram despejados em dois ou três pontos da seara, formando montes de onde, em devido tempo, eram transportadas, em carros de bois ou de mulas, para as eiras. Os canoilos ficavam, podendo vir a ter um destino diverso: ou permanecerem ali, de pé, caso em que o gado, ao ser depois posto a pastar no local, ainda aproveitava alguma coisa e em que o que sobrasse seria enterrado na próxima lavoura, enriquecendo o húmus; ou serem cortados (a ferramenta usada para tudo quanto fosse corte nestas searas era a foice) e também levados em molhos para palheiros, a fim de servirem de cama ao gado e, depois de cumprida essa função, serem levados para a estrumeira, de onde voltariam à terra, para adubá-la. “Nada nasce, nada morre, tudo se transforma”, Lavoisier dixit.Se a seara não encorpava coisa que se visse, era ceifada rente ao chão e também disposta em paveias, só depois se extraindo a maçaroca. Dali, era dado a cada coisa o destino já nosso conhecido: paveias para o palheiro; maçarocas para a eira. E para a eira eram levados igualmente o feijão, arrancado pela raiz, e as abóboras, arrancadas às aboboreiras.

Passemos à eira, e comecemos pela descamisada. A descamisada era feita, na sua totalidade ou quase, à noite, depois da ceia e à luz de gasómetros. Normalmente, cada monte de milho levava mais do que um serão a descamisar, dependendo do seu tamanho e do número dos participantes. Para a descamisada ia a família toda, menos os que ainda nem força tivessem para tirar a camisa à maçaroca. E menos os rapazes que namoravam. Esses iam para o monte de milho das namoradas. As maçarocas descamisadas iam sendo atiradas para cestos que, quando cheios, iam ser despejados na eira, deixando-se o milho espalhado, para melhor acabar de secar. As primeiras camisas iam sendo dispostas de maneira a servirem de assento (sempre ficava mais macio que o chão) e depois eram atiradas para o lado e amontoadas, para posterior enfardamento manual. Serviam, nesse tempo, sobretudo para, depois de desfiadas, encherem colchões e almofadas.

À volta dos montes de milho podia haver um quase silêncio, se os descamisadores eram somente um casal, ou conversava-se, contavam-se anedotas, gracejava-se a propósito de qualquer coisa, quando os participantes eram em maior número. E se calhava de aparecer alguma maçaroca roxa, era uma algazarra, tanto mais que aquele ou aquela que a tivesse encontrado ficava obrigado a dar um beijo a cada um dos presentes, o que criava muitos constrangimentos. Basta que se saiba que, naquele tempo, as pessoas não se cumprimentavam beijando-se. Beijos, só entre os casais (e feito com muito recato) e entre mães e filhos. Entre os namorados, só muito à socapa. Era proibido, mas oportunidades não faltavam, pelo menos quando o namoro tivesse recebido já o aval do pai da rapariga ou de quem o substituísse, altura a partir da qual decorria dentro de casa.

Depois da descamisada e de decorrido o tempo necessário para que o milho secasse bem, chegava a vez da escarola, na qual eram então utilizados três processos, dependendo a utilização de um ou de outro das disponibilidades da eira e das posses do seareiro: o mangual, a escaroladora manual e a escaloradora movida a motor.  Mangual, cada um tinha o seu, embora fosse já muito pouco usado para escarolar o milho. Mas era com ele que se malhavam todos os legumes. A escaroladora manual era propriedade do dono da eira, que normalmente não tinha mais que uma, o que obrigava os seareiros a marcarem a sua vez junto do encarregado da eira. Era de utilização gratuita e exigia força, para dar à manivela. Tarefa para os homens e rapazes, que nela se revezavam. Também acontecia agarrarem-se dois à manivela, para lhe darem maior ímpeto. A escaroladora a motor era pouco usada. Apareceu a certa altura, propriedade do António Palmeirão, um pequeno proprietário, que a alugava a troco de uma parte do milho escarolado.

O milho era depois novamente espalhado na eira e remexido duas ou três vezes, arrastando-se por ele os pés ou um ancinho de madeira, para secar bem. Quando já bem seco, era amontoado e passado à tarara, instrumento, também manual, que fazia voar as impurezas através do vento que produzia.
Finalmente, estava o milho pronto para a partilha. Chegava-se o medidor com o alqueire e com os sacos do patrão, e o seareiro com os seus. E a partilha era assim: ao quinto (de cada cinco partes, quatro para o dono da terra e uma para o seareiro), se a seara fora de sequeiro; ao sexto (cinco para o dono da terra, uma para o seareiro), se a seara fora de regadio. Exploração pura e dura. E partilha igual era a do feijão branco e a do feijão frade, a do grão de bico e a das abóboras.


Em anos de boa colheita, ficavam as arcas com milho e feijão que davam para todo o ano ou quase – e era uma alegria. O pior, é que nem sempre assim acontecia. Havia anos maus.


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