terça-feira, 4 de março de 2008

A Lenha


A saga das mulheres e da cachopada continua. Já falei de como era angariada uma parte do combustível para as necessidades caseiras: as vides. Mas as vides, além de arderem depressa, eram uma diminuta fracção do combustível necessário para um ano inteiro. Pelo que tinha de se recorrer a outros meios para arranjar o resto. Quando as finanças o permitiam, e fazia-se por isso, comprava-se lenha extraída das oliveiras por altura da destronca. E aqui falo de destronca, não de limpeza.

Com efeito, tendo em vista manter a ramagem viçosa e boa a produção, em cada período de cinco anos havia esses dois tipos de tratamento às oliveiras.  O processo obedecia ao seguinte esquema:
Ao quinto ano de cada ciclo, as oliveiras eram deixadas apenas com algumas pernadas, pelo que a principal ferramenta utilizada na operação era o serrote. No ano seguinte, a produção era quase nula e apanhada à mão (ripada), para que os ramos novos não sofressem danos. E depois da colheita fazia-se então uma limpeza: um desbaste dos ramos, de maneira a deixá-los formando uma copa tanto quanto possível circular, em forma de cálice, nisso se fazendo valer a perícia do operador, que nesse caso usava muito mais a tesoura de poda que o serrote. No ano seguinte, a azeitona, já em maior quantidade, mas com uma produção ainda escassa, voltava a ser ripada. Até nova destronca, a azeitona, com a produção sempre em crescendo, se bem que dependente das condições atmosféricas de cada ano, passava geralmente a ser varejada.

Como os olivais eram muitos e cada um dos grandes proprietários possuía vários, naturalmente que eles próprios predispunham as coisas para que as destroncas se intercalassem, por forma a poderem obter uma colheita equilibrada todos os anos. O que significa que também todos os anos havia lenha de oliveira à venda.  E, portanto, quem o podia fazer, aí ia buscar, comprando-a, como já disse, uma carrada, pelo menos. Porque nem todos podiam. Assim como havia um ou outro que podia comprar mais. E comprava. Mesmo entre os mais pobres, há uns mais pobres que outros. Evidentemente, como diria o Manuel Cameiro, avô materno de um dos capitães da Revolução dos Cravos (o Costa Brás) e proprietário que, numa escala de três níveis – pequenos, médios e grandes – classificarei de pequeno. Donde lhe veio a aprendizagem do termo, nada usual naquele meio e naquele tempo, não sei. O que sei é que ele o usava por tudo e por nada e que, por causa disso, o pessoal às vezes o parodiava.

Voltando à lenha, resta dizer que as vides e a carrada de lenha de oliveira, quando comprada, não chegavam para as encomendas, como sói dizer-se (perdõe-se-me o arcaismo), nem coisa que se parecesse. De onde... a necessidade de roubar (Que palavra feia!) o resto. E que era tarefa (mais uma...) sobretudo para as mulheres. Onde se pudesse deitar a mão a uns gravetos, a umas raízes secas (no mato, que ficava para lá da Linha do Norte, pelo menos dois quilómetros andados), a umas cavacas, para aí se caminhava, de serrote ou sacho e de corda ou saca, tão disfarçadamente quanto possível e evitando maus encontros. Era um jogo constante do gato e do rato. E a minha mãe não se livrou de ter também sido multada uma vez por andar à lenha, por sinal na Requeixada.  Se a expedição corria bem, era vê-las no regresso (juntavam-se sempre duas ou três vizinhas para a jornada), com o molho ou a sacada à cabeça, usando a sogra de permeio, para melhor equilibrar a carga e para evitar o contacto de coisas duras com o crânio.


As cavacas, eram mais os homens que iam à sua procura, coisa que faziam especialmente no inverno, em dias sem trabalho. E para isso a ferramenta adequada era uma sega, ferramenta grossa, de ferro, utilizada especialmente para abrir buracos em chão duro ou pedregoso. Numa terra de tanta oliveira, era, naturalmente, nos troncos já carcomidos das oliveiras mais velhas que se tentava arrancar as cavacas, metendo a sega pelos interstícios. O que exigia força. E daí que os homens fossem mais dotados para isso. Algumas vezes eu vi o meu pai sair para ver se trazia umas cavacas, que bom jeito faziam para a fritura dos tradicionais velhós (assim se chamava no Pombalinho às filhós) e coscorões, na noite de Natal. 



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