Sob certos aspectos, a
vida mudou muito, mudou completamente. E sempre assim terá sido, senão
viveríamos ainda todos em cavernas. Noutros, naturalmente, nem tanto, ou mesmo
nada. Têm mudado muito, e mudam cada vez mais, assumindo proporções de
progressão aritmética, senão mesmo geométrica, porque propulsionadas pela ânsia
do Homem em dominar a matéria e melhorar a sua qualidade de vida, sobretudo os
aspectos materiais; é mais lenta, por uma propensão conservadora e fatalista,
subserviente e obscurantista da espécie humana, a transformação da mente, que é
como quem diz, a subversão de usos e costumes.
Ora, mudança grande, estrondosa, radical, aconteceu com as
oliveiras na minha terra e arredores. Eram hectares e hectares e hectares
plantados de oliveiras, grande parte delas muito provavelmente já seculares.
Eram uma enorme riqueza da região. Ainda assim era em 1959, quando eu fiz
também uma grande mudança, de Portugal para Moçambique. Hoje, em toda essa
extensão vêem-se meia dúzia de oliveiras, uma aqui, outra ali, em hortas e
quintais.
Quando, em 1964, voltei ao Pombalinho, no gozo da tão colonial
“licença graciosa” (150 dias, mais o tempo das viagens, que eram feitas de
barco, mais o tempo que se ficava à espera do embarque, e ainda mais um ou dois
meses, coisa facilmente conseguida por aqueles que nisso estivessem
interessados, com uma ida à Junta de Saúde do Hospital do Ultramar, queixando-se
de qualquer maleita) – quando, em 1964, dizia eu, voltei ao Pombalinho no gozo
da tão colonial “licença graciosa” a que os funcionários do Estado colocados
nas colónias tinham direito por cada período de 4 anos de estadia, o primeiro
olival, um dos maiores, tinha desaparecido. Tinha sido arrancado pela raiz. Era
um dos muitos olivais do João d’Assumpção Coimbra. Em seu lugar, haviam sido
plantadas macieiras.
O azeite havia entrado em descrédito. Começara a propalar-se que o
mesmo não era bom para a saúde, e recomendava-se, em sua substituição, o
consumo de óleo de milho, que entretanto aparecera no mercado. A procura do
azeite baixara. Os olivais já não davam ganho. E foram indo uns atrás dos
outros. Os lagares pararam. Acabou a produção de azeite no Pombalinho e nas
suas redondezas.
Na maior parte daqueles olivais, tinha eu trabalhado, e naquele
também, entre os 12 e os 14 ou 15 anos, primeiro a espalhar o estrume, de
forquilha em punho, antes da lavoura, e depois a cavar as marradas (a terra à
volta das oliveiras a que a charrua não chegava) e a gradar, preparando a terra
para a sementeira, ora de trigo, ora de favas, e também de grão de bico. Éramos
sempre um grupo de nove ou dez rapazes, mais o maioral das éguas, as quais umas
vezes íamos buscar ao lugar da pastagem, cada um a sua parelha, e à noite,
depois da jornada de trabalho, íamos lá deixar, outras vezes eram trazidas em
rebanho ao local da gradagem e ali lhes deitávamos a mão. A parelha que
agarrássemos no primeiro dia era aquela com que ficávamos enquanto durasse a
gradagem, o que, para mim, era um martírio. Até hoje, e, claro, vai ser para
sempre, tenho uma dificuldade tremenda em fixar fisionomias. Sejam elas de
animais ou de pessoas. E então, o que é que acontecia? Enquanto os meus
companheiros, com toda a facilidade, procuravam a sua parelha e lhe deitavam a
mão, eu tinha que ficar à espera das éguas que sobravam. A não ser que me
tivesse calhado logo no primeiro dia alguma com um sinal muito evidente em
qualquer parte do corpo - uma pinta, por exemplo - que mais nenhuma tivesse.
E martírio era também quando íamos de manhã buscar as éguas ao
local da pastagem e à noite lá as íamos deixar, revelando-se logo aí a falta de
jeito que pela vida fora me havia de acompanhar para lidar com bestas. Em
sentido real e figurado. Como albarda, tínhamos apenas uma saca que levávamos
de casa. E alguns dos meus companheiros, nem isso. Pois bem, enquanto que para
eles aquelas cavalgadas eram uma festa, conseguindo ajustar perfeitamente os
seus movimentos aos movimentos das éguas que montavam, fossem elas a trote ou a
galope, eu fartava-me de baloiçar em cima delas e, às tantas, zás, dava com as
costelas no chão. Os outros divertiam-se. Como nos divertíamos quando algum de
nós se desequilibrava em cima da grade, por as leivas serem muito grandes e
estarem muito duras, e enfiava uma perna pela grade. A maior parte das vezes,
quando tal acontecia, logo se conseguia parar as éguas. Mas também acontecia
elas não pararem - e espantarem-se, até - e então é que a coisa ficava feia. Agarra,
agarra, que é lebre!..., gritava
a malta. Que me lembre, nunca algum fracturou uma perna, embora o risco de que
tal sucedesse fosse grande. Mas de umas contusões não nos livrávamos.
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