quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Adeus oliveiras!


Sob certos aspectos, a vida mudou muito, mudou completamente. E sempre assim terá sido, senão viveríamos ainda todos em cavernas. Noutros, naturalmente, nem tanto, ou mesmo nada. Têm mudado muito, e mudam cada vez mais, assumindo proporções de progressão aritmética, senão mesmo geométrica, porque propulsionadas pela ânsia do Homem em dominar a matéria e melhorar a sua qualidade de vida, sobretudo os aspectos materiais; é mais lenta, por uma propensão conservadora e fatalista, subserviente e obscurantista da espécie humana, a transformação da mente, que é como quem diz, a subversão de usos e costumes.

Ora, mudança grande, estrondosa, radical, aconteceu com as oliveiras na minha terra e arredores. Eram hectares e hectares e hectares plantados de oliveiras, grande parte delas muito provavelmente já seculares. Eram uma enorme riqueza da região. Ainda assim era em 1959, quando eu fiz também uma grande mudança, de Portugal para Moçambique. Hoje, em toda essa extensão vêem-se meia dúzia de oliveiras, uma aqui, outra ali, em hortas e quintais.

Quando, em 1964, voltei ao Pombalinho, no gozo da tão colonial “licença graciosa” (150 dias, mais o tempo das viagens, que eram feitas de barco, mais o tempo que se ficava à espera do embarque, e ainda mais um ou dois meses, coisa facilmente conseguida por aqueles que nisso estivessem interessados, com uma ida à Junta de Saúde do Hospital do Ultramar, queixando-se de qualquer maleita) – quando, em 1964, dizia eu, voltei ao Pombalinho no gozo da tão colonial “licença graciosa” a que os funcionários do Estado colocados nas colónias tinham direito por cada período de 4 anos de estadia, o primeiro olival, um dos maiores, tinha desaparecido. Tinha sido arrancado pela raiz. Era um dos muitos olivais do João d’Assumpção Coimbra. Em seu lugar, haviam sido plantadas macieiras.

O azeite havia entrado em descrédito. Começara a propalar-se que o mesmo não era bom para a saúde, e recomendava-se, em sua substituição, o consumo de óleo de milho, que entretanto aparecera no mercado. A procura do azeite baixara. Os olivais já não davam ganho. E foram indo uns atrás dos outros. Os lagares pararam. Acabou a produção de azeite no Pombalinho e nas suas redondezas.

Na maior parte daqueles olivais, tinha eu trabalhado, e naquele também, entre os 12 e os 14 ou 15 anos, primeiro a espalhar o estrume, de forquilha em punho, antes da lavoura, e depois a cavar as marradas (a terra à volta das oliveiras a que a charrua não chegava) e a gradar, preparando a terra para a sementeira, ora de trigo, ora de favas, e também de grão de bico. Éramos sempre um grupo de nove ou dez rapazes, mais o maioral das éguas, as quais umas vezes íamos buscar ao lugar da pastagem, cada um a sua parelha, e à noite, depois da jornada de trabalho, íamos lá deixar, outras vezes eram trazidas em rebanho ao local da gradagem e ali lhes deitávamos a mão. A parelha que agarrássemos no primeiro dia era aquela com que ficávamos enquanto durasse a gradagem, o que, para mim, era um martírio. Até hoje, e, claro, vai ser para sempre, tenho uma dificuldade tremenda em fixar fisionomias. Sejam elas de animais ou de pessoas. E então, o que é que acontecia? Enquanto os meus companheiros, com toda a facilidade, procuravam a sua parelha e lhe deitavam a mão, eu tinha que ficar à espera das éguas que sobravam. A não ser que me tivesse calhado logo no primeiro dia alguma com um sinal muito evidente em qualquer parte do corpo - uma pinta, por exemplo - que mais nenhuma tivesse.


E martírio era também quando íamos de manhã buscar as éguas ao local da pastagem e à noite lá as íamos deixar, revelando-se logo aí a falta de jeito que pela vida fora me havia de acompanhar para lidar com bestas. Em sentido real e figurado. Como albarda, tínhamos apenas uma saca que levávamos de casa. E alguns dos meus companheiros, nem isso. Pois bem, enquanto que para eles aquelas cavalgadas eram uma festa, conseguindo ajustar perfeitamente os seus movimentos aos movimentos das éguas que montavam, fossem elas a trote ou a galope, eu fartava-me de baloiçar em cima delas e, às tantas, zás, dava com as costelas no chão. Os outros divertiam-se. Como nos divertíamos quando algum de nós se desequilibrava em cima da grade, por as leivas serem muito grandes e estarem muito duras, e enfiava uma perna pela grade. A maior parte das vezes, quando tal acontecia, logo se conseguia parar as éguas. Mas também acontecia elas não pararem - e espantarem-se, até - e então é que a coisa ficava feia. Agarra, agarra, que é lebre!..., gritava a malta. Que me lembre, nunca algum fracturou uma perna, embora o risco de que tal sucedesse fosse grande. Mas de umas contusões não nos livrávamos.


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