quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Rabisco das Uvas


Realmente, não se perdia nada. Depois da vindima acabada, as vinhas não escapavam também a uma rabiscadela. Por entre a parra escapava sempre algum cacho mais pequeno à vista do vindimador. Esse era o único rabisco em que não havia divisão com os donos das vinhas. Ficava-se com uvas para alguns dias ou fazia-se arrobe, para o que se espremiam as uvas e se punha o mosto ao lume, deixando-o ferver até ficar espesso. E comia-se espalhado no pão. Não era, porém, coisa que se fizesse muito, para poupar a lenha.

Por falar em vindimas, vem a propósito dizer que foi a vindimar que eu ganhei o meu primeiro salário. Tinha dez anos e estava nas férias escolares entre a terceira e a quarta classes da instrução primária. O Américo Cachado, um dos pequenos proprietários do Pombalinho, também tinha uma vinha. E pôs miúdos a fazer a vindima. Não sei se fazia sempre assim, ou se foi só naquele ano. Porque o normal era serem raparigas das que já andavam nos trabalhos do campo, assalariadas, a fazerem a vindima. Isso, porque havia os trabalhos para homens e os trabalhos para mulheres. Por um lado, porque havia trabalhos (os que exigiam maior esforço físico) em que as mulheres não davam o mesmo rendimento que os homens; por outro, porque o salário das mulheres era por norma aproximadamente metade do salário dos homens. E menor ainda que o das mulheres, era o salário dos miúdos, rapazes e raparigas. Ora, a verdade é que, por não exigirem grande esforço, havia trabalhos em que todos davam o mesmo rendimento, ou em que, pelo menos, a diferença de rendimento seria bem compensada pela diferença do salário. A vindima era, seguramente, um desses trabalhos, e o Américo Cachado sabia tirar partido disso. Haveria de passar ainda para aí meio século até que se começasse a falar de exploração do trabalho infantil.

Esse meu primeiro salário foi de 2$50 (dois escudos e cinquenta centavos) por dia. Não me lembro de todos que andámos nessa vindima. Mas lembro-me do António Maria (da Isaura; havia outro António Maria, filho do Izidoro “Sapateiro”, e ambos tinham como apelido Duarte ), do João Fataça e duma irmã deste, a Gracinda.

Falando de uvas, falta dizer que estas também eram alvo, a partir do seu amadurecimento, de umas tentativas de apropriamento indevido, ou seja, de umas furtadelas, especialmente por parte da rapaziada, sempre aventureira nas suas brincadeiras em grupo ao passar por onde houvesse fruta, no campo ou nas hortas, apesar dos muros e das sebes erguidos à sua volta. Eu não era dos mais ousados nessas incursões, mas, como é sabido, o grupo predispõe ao atrevimento. Apesar disso, há sempre os mais ousados, que vão à acção, e os mais temerosos, que ficam de vigília, se bem que para efeitos de culpa se diga que tão ladrão é o que rouba como o que fica à porta.

Uma vez, tinha eu quinze ou dezasseis anos, meteu-se-me na cabeça ir roubar uvas. Andava então a trabalhar no forno do Alviela (voltarei com certeza a falar deste trabalho), que distava cerca de dois quilómetros e meio do Pombalinho e onde, nesse ano, andavam também a trabalhar o Ernesto Hilário e o Fernando Gaião, um ou dois anos mais novos que eu. Era o tempo em que as uvas começavam a amadurecer. As vinhas já tinham guarda. Naquele dia, depois de despegarmos e ao passarmos pela Vinha dos Dezoito, do João d’Assumpção Coimbra, topei uma abertura na sebe de marmeleiros por onde me pareceu que conseguiria passar. Disse então aos meus companheiros para esperarem um bocado, enquanto eu ia às uvas. E fui. Furei pelo buraco e dirigi-me, quase de rastos, para as cepas mais próximas. Estava já bastante escuro. Já nem dava para ver os cachos por entre a parra. Por isso, e para não apanhar uvas verdes, tive de pôr-me a apalpar os cachos. E estava eu nessa azáfama quando ouço uma voz, pausada: - Então , já estão maduras?
Olho para o lado de onde vinha a voz e lá estava ele, o guarda, um homenzarrão, parado e olhando para mim, apoiado ao seu cajado. Então, ah pernas para que te quero!... e aí vou eu direito à sebe, que desta vez não furei, saltei. O que me valeu foi que eu até saltava bem. Algumas vezes em que a malta competia a ver quem saltava mais alto ou mais longe, eu ganhava quase sempre. E foi isso que me levou à prática do atletismo no Sporting Clube de Portugal, enquanto cumpria o serviço militar.

O que me valeu, é como quem diz, porque se o guarda me tivesse querido fazer mal, podia muito bem tê-lo feito. Foi um gajo porreiro.


Sem comentários: