Realmente, não se
perdia nada. Depois da vindima acabada, as vinhas não escapavam também a uma
rabiscadela. Por entre a parra escapava sempre algum cacho mais pequeno à vista
do vindimador. Esse era o único rabisco em que não havia divisão com os donos
das vinhas. Ficava-se com uvas para alguns dias ou fazia-se arrobe, para o que
se espremiam as uvas e se punha o mosto ao lume, deixando-o ferver até ficar
espesso. E comia-se espalhado no pão. Não era, porém, coisa que se fizesse
muito, para poupar a lenha.
Por falar em vindimas, vem a propósito dizer que foi a vindimar
que eu ganhei o meu primeiro salário. Tinha dez anos e estava nas férias
escolares entre a terceira e a quarta classes da instrução primária. O Américo
Cachado, um dos pequenos proprietários do Pombalinho, também tinha uma vinha. E
pôs miúdos a fazer a vindima. Não sei se fazia sempre assim, ou se foi só
naquele ano. Porque o normal era serem raparigas das que já andavam nos
trabalhos do campo, assalariadas, a fazerem a vindima. Isso, porque havia os
trabalhos para homens e os trabalhos para mulheres. Por um lado, porque havia
trabalhos (os que exigiam maior esforço físico) em que as mulheres não davam o
mesmo rendimento que os homens; por outro, porque o salário das mulheres era
por norma aproximadamente metade do salário dos homens. E menor ainda que o das
mulheres, era o salário dos miúdos, rapazes e raparigas. Ora, a verdade é que,
por não exigirem grande esforço, havia trabalhos em que todos davam o mesmo
rendimento, ou em que, pelo menos, a diferença de rendimento seria bem
compensada pela diferença do salário. A vindima era, seguramente, um desses
trabalhos, e o Américo Cachado sabia tirar partido disso. Haveria de passar
ainda para aí meio século até que se começasse a falar de exploração do
trabalho infantil.
Esse meu primeiro salário foi de 2$50 (dois escudos e cinquenta
centavos) por dia. Não me lembro de todos que andámos nessa vindima. Mas
lembro-me do António Maria (da Isaura; havia outro António Maria, filho do
Izidoro “Sapateiro”, e ambos tinham como apelido Duarte ), do João Fataça e
duma irmã deste, a Gracinda.
Falando de uvas, falta dizer que estas também eram alvo, a partir
do seu amadurecimento, de umas tentativas de apropriamento indevido, ou seja,
de umas furtadelas, especialmente por parte da rapaziada, sempre aventureira
nas suas brincadeiras em grupo ao passar por onde houvesse fruta, no campo ou
nas hortas, apesar dos muros e das sebes erguidos à sua volta. Eu não era dos
mais ousados nessas incursões, mas, como é sabido, o grupo predispõe ao
atrevimento. Apesar disso, há sempre os mais ousados, que vão à acção, e os
mais temerosos, que ficam de vigília, se bem que para efeitos de culpa se diga
que tão ladrão é o que rouba como o que fica à
porta.
Uma vez, tinha eu quinze ou dezasseis anos, meteu-se-me na cabeça ir roubar uvas. Andava então a trabalhar no forno do Alviela (voltarei com certeza a falar deste trabalho), que distava cerca de dois quilómetros e meio do Pombalinho e onde, nesse ano, andavam também a trabalhar o Ernesto Hilário e o Fernando Gaião, um ou dois anos mais novos que eu. Era o tempo em que as uvas começavam a amadurecer. As vinhas já tinham guarda. Naquele dia, depois de despegarmos e ao passarmos pela Vinha dos Dezoito, do João d’Assumpção Coimbra, topei uma abertura na sebe de marmeleiros por onde me pareceu que conseguiria passar. Disse então aos meus companheiros para esperarem um bocado, enquanto eu ia às uvas. E fui. Furei pelo buraco e dirigi-me, quase de rastos, para as cepas mais próximas. Estava já bastante escuro. Já nem dava para ver os cachos por entre a parra. Por isso, e para não apanhar uvas verdes, tive de pôr-me a apalpar os cachos. E estava eu nessa azáfama quando ouço uma voz, pausada: - Então , já estão maduras?
Olho para o lado de onde vinha a voz e lá estava ele, o guarda, um
homenzarrão, parado e olhando para mim, apoiado ao seu cajado. Então, ah pernas
para que te quero!... e aí vou eu direito à sebe, que desta vez não furei,
saltei. O que me valeu foi que eu até saltava bem. Algumas vezes em que a malta
competia a ver quem saltava mais alto ou mais longe, eu ganhava quase sempre. E
foi isso que me levou à prática do atletismo no Sporting Clube de Portugal,
enquanto cumpria o serviço militar.
O que me valeu, é como quem diz, porque se o guarda me tivesse
querido fazer mal, podia muito bem tê-lo feito. Foi um gajo porreiro.
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